Depois de pesquisarmos aprofundadamente as palavras em questão, chegámos à conclusão de que não fazem parte do ronga, pois além de não estarem registadas no Dicionário de Ronga-Português, de Rodrigo de Sá Nogueira, a grafia não é propria dessa língua (ex.: em ronga não existem a letra <c> ou <ç>, nem o dígrafo <lh>. Também não estamos totalmente perante a variante do português de Moçambique, pois algumas destas palavras existem em português, não são exclusivas nem são regionalismos de Moçambique. Algumas são adulteradas para o texto literário, mas não fazem necessariamente parte da norma moçambicana, pois nem todas têm traços morfológicos de línguas africanas, são antes criadas ou inventadas, o que é frequente em muitos autores; é a chamada liberdade poética e consiste na modificação de palavras, na invenção de expressões, na alteração ou omissão de pontuação, etc.
No Caderno de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa da Universidade Aberta (pp. 314-315) é dito o seguinte sobre Mia Couto:
«A [sua] criatividade e a inventividade da linguagem [são] típica[s] de escritores colonizados, [...] que procuram afirmar uma diferença linguística e literária no interior da língua do colonizador, na esteira de James Joyce (irlandês), João Guimarães Rosa (brasileiro), Katebe Yacine (argelino) ou José Luandino Vieira (angolano).
Especificando a criatividade da linguagem, verifique-se que, a nível da sintaxe e do léxico, assenta, tal como acontece em José Luandino Vieira, na exploração das potencialidades estruturais do português, como da pressão que as estruturas e a fala das línguas africanas, sobretudo do ronga, exercem sobre a norma europeia, contribuindo para o desenvolvimento de uma norma moçambicana. A circunloquialidade das falas populares não deixa de influir nessa língua literária, que flexibiliza a frase e remodela as potencialidades da estrutura. Exemplos, extraídos do conto "O dia em que explodiu Mabata-bata" (in Vozes anoitecidas), que trata da "explosão de um boi" devida à queda de um projéctil de guerra: "Deve ser foi um relâmpago"; "Mas relâmpago não podia"; "onde se juntam os todos rios para nascerem"; "conforme sucedeu-se"; "Agora, esse boi pertencia daqui"; "O pastor estamos à espera"; "queremos falar com ele, saber como foi sucedido"; "Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se"; "ia matar-lhe de porrada"; "o Azarias vai negar de ouvir quando chamares"; "uma silhueta deu aparecimento"; "nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados"; "Os bois estão aqui, perto comigo"; "Posso continuar ajudar nos bois"; "Mas nada não falou"; "Vens pousar quem, ndlati?" (pássaro) (transcrições por ordem de aparecimento; itálico nas falas).»
Vejamos agora as palavras uma a uma, por ordem alfabética:
1. Barafundido
Barafundido não está registado em dicionário, mas barafunda e barafundear estão, e, curiosamente, no Dicionário Houaiss, argumenta-se que a primeira é de origem africana:
«Barafunda s. f. (c1543 JFVascE 168) 1 situação em que não há controle ou ordem, na qual um grupo de pessoas produz tumulto, balbúrdia, pandemônio 2 mistura desordenada de coisas diversas; mixórdia, baralhada, bagunça 3 bordado de agulha sobre pano desfiado; crivo - etim orig. obsc.; Nei Lopes propõe o quimb. mbala 'aldeia' e top. angolano Funda, aglomerado populacional onde havia confusão e balbúrdia. Barafundear v. 1 t. d. tornar confuso; misturar, desordenar 2 t. d. e pron. cansar a cabeça de (alguém) com confusão, falatório desordenado etc.; esgotar(-se) - gram a respeito da conj. deste verbo ver -ear - etim barafunda + -ear.»
Pela sua morfologia, barafundido parece ser um particípio passado, de um verbo também inventado, barafundir, variante de barafundear, cujo particípio passado seria barafundeado. Por outro lado, pode-se também considerar uma amálgama de barafunda e confundir.
2. Cabistonto
Apesar de cabistonto não estar registado no dicionário, pode-se afirmar que é uma aglutinação de cabeça + tonto, criada com base na palavra cabisbaixo:
«Cabisbaixo adj. (1589 cf. Arrais II) 1 com a cabeça baixa, não ereta, pescoço e ombros curvados para a frente 2 p. metf. moralmente abatido ou desanimado; triste, desolado, envergonhado, derrotado, humilhado - etim orig. duv., prov. de cabeça + baixo, aglutinados, com apócope da última sílaba de cabeça e fechamento da vogal tônica; cp. o esp. cabizbajo (1555) 'id.', síncope de cabecibajo, de que o port. pode ser adp.»
Sendo que tonto significa «que ou o que não está em si ou que é atarantado, atônito; que ou o que é maluco, doido, tolo, demente», cabistonto, parece designar alguém tolo.
3. Desacudidas
Também desacudido não se encontra registado, contudo, podemos encontrar o verbo acudir, tal como o adjecivo acudido, «que se acudiu; que recebeu amparo; auxiliado, socorrido, favorecido...». Desta forma, alguém desacudido é alguém desamparado, visto que o prefixo des- indica uma oposição.
4. Desarpoar
A explicação para a palavra anterior aplica-se a esta. Desarpoar não se encontra registado, mas arpoar, sim: «v. (1576 PMGandH fº 28v) 1 int. psc arremessar o arpão; arpar, arpear <quando arpoaram, o tubarão já ia longe> 1.1 t. d. p. ext. ferir, fisgar com arpão ou arpéu; cravar o arpão ou arpéu em <a. uma baleia> 2 t. d. p. ext. tornar seguro, firme, preso <arpoou o papel antes que voasse> 2.1 t. d. fig. impedir que escape; agarrar <associando idéias, conseguiu finalmente a. a palavra que lhe fugia> 3 t. d. fig. tornar submisso; dominar, conquistar, seduzir <ardis com que o espírito maligno arpoa suas vítimas> 4 pron. CE manifestar ressentimento de alguém; magoar-se - gram a respeito da conj. deste verbo, ver -oar - etim arpão sob a f. rad. desnasalizada arpo + -ar».
6. Esvoar
Neste caso, as palavras dicionarizadas correspondentes são voar, esvoaçar ou esvoejar.
7. Estonteação
Estonteação é uma palavra dicionarizada e aceite pelas normas europeia e brasileira: «s. f. m. q. estonteamento - etim estontear + -ção»; estonteamento «s. m. (1881 cf. CA1) 1 ato ou efeito de estontear(-se); atordoamento, desorientação 2 estado de indivíduo estonteado - etim estontear + -mento», substantivos formados a partir do verbo estontear «v. (1836 cf. SC) 1 t. d. int. e pron. fazer ficar ou ficar desnorteado; fazer perder ou perder o tino; atordoar(-se), entontecer(-se), estontecer(-se), perturbar(-se) <o alarido dos torcedores estonteou-a> <a corrida louca contra o tempo estonteia> <estonteou-se com a luz dos holofotes> 2 t. d. fig. fazer ficar maravilhado; deslumbrar, maravilhar, estontecer <o prestidigitador estonteou a platéia com seus truques> gram a respeito da conj. deste verbo, ver -ear - etim es- + tontear - sin/var ver sinonímia de entontecer», e com base no qual existem os adjectivos estonteado, estonteante e estonteador.
8. Eclatar
Este termo não se encontra registado, contudo, parece ser uma adaptação do francês eclater, que significa explodir; rebentar. Mas só se pode confirmar esta acepção no contexto de onde foi retirada a palavra.
9. Estrelinhar
Esta palavra também não se encontra dicionarizada, contudo, é visível que é formada a partir do verbo estrelar, «dar a forma de estrela», por analogia a escrever - escrevinhar.
10. Pilha-patos
Um dos significados do verbo pilhar é roubar, logo, um pilha-patos é alguém que rouba patos; um ladrão de patos. Trata-se de um composto sintagmático, como guarda-roupa ou saca-rolhas.
11. Voações
Este é um dos termos inventados, tem morfologia de substantivo, e é formado através do verbo voar. Contudo, o substantivo dicionarizado relacionado com o verbo voar é voo, e não voação.
Podemos dizer que estas palavras estão todas bem formadas do ponto de vista morfológico do português e não são difíceis de interpretar do ponto de vista semântico (à excepção de eclatar), apenas algumas não existem fora do contexto literário. Algumas palavras não dicionarizadas, usadas com muita frequência, podem até vir a fazer parte do léxico da língua e substituir outras mais complexas com o mesmo significado, pois uma língua viva está em constante mudança, e o léxico é o componente onde a mudança é mais visível.