«O voſſo principal cuidado (minhas queridas filhas) deve ſer ſemeiar na terra fertil dos voſſos poucos annos, os principios da voſſa felicidade ſolida; felicidade que vos ſatisfaça neſte mundo, e que vos prepara para o de outro: ora eſta felicidade confliſte em cultivar bem voſſo animo com as maximas da Chriſtandade, e com a applicação as Artes e Linguas que vos podem procurar ao meſmo tempo neſte mundo e eſtimação, e evitar a ruina que a ociozidade, e ignorancia, e má cultura coſtumão cauzar em ordem ao outro»1 – são estas palavras que Francisca de Chantal Álvares dedica às leitoras do seu Breve Compendio da Grammatica Portugueza, a primeira obra dedicada ao estudo da língua portuguesa escrita por uma mulher, publicada em 1786, e que tinha como objetivo servir de auxílio à aprendizagem da língua materna. Seria necessário esperar mais de um século para que outras mulheres voltassem a ter a ousadia de escrever e publicar uma gramática dedicada à língua portuguesa.
Tradicionalmente, as mulheres e as suas trajetórias têm sido invisíveis ou de reconhecimento reduzido em muitas áreas. Mesmo naquelas em que o número de colaborações femininas é grande, o seu reconhecimento é ainda discreto ou praticamente nulo. No caso específico do estudo da gramática e da língua portuguesa, durante séculos, os contributos das mulheres foram bastante ignorados. Em parte, muito por causa de o acesso à educação estar impedido à grande maioria de meninas e jovens mulheres, sendo apenas permitido àquelas que entravam na vida religiosa, como foi o caso de Francisca de Chantal Álvares, ou que pertenciam à alta aristocracia. Será apenas em meados do século XIX, com a criação de escolas dedicadas ao ensino de raparigas, que a preocupação com a alfabetização das mulheres começa a ter grande relevância. Neste sentido, surgem os primeiros trabalhos produzidos por mulheres e que tinham como objetivo descrever e ensinar os princípios e as normas da língua portuguesa.
Na luta pela educação da mulher portuguesa nos finais do século XIX e início do século XX, destacam-se nomes como Maria Amália Vaz de Carvalho e Carolina Michaelis de Vasconcelos, as primeiras mulheres a serem admitidas como membros da Academia das Ciências de Lisboa, em 1912. Esta última foi uma figura de destaque nos estudos filológicos, colaborando na organização da primeira edição do famoso Dicionário Michaelis e chegando inclusive a ser a primeira mulher a lecionar aulas numa universidade portuguesa, mais concretamente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde desenvolveu trabalho sobre a cultura e língua portuguesa medieval e quinhentista.
Carolina Michaelis apoiou ainda o trabalho linguístico desenvolvido na época por outras estudiosas da língua portuguesa como, por exemplo, A Gramática das Criancinhas, de Virgínia Gersão, publicada em 1921. Nesta obra é adotado um interessante ponto de vista sobre a forma de ensinar a gramática da língua portuguesa, na medida em que se tenta explicar os conteúdos gramaticais através da imaginação e criatividade, uma vez que a sua autora considerava que «É tam profunda a antipatia que todos os alunos sentem por êsse livro, cujo valor não compreendem, que eu acho indispensável que as primeiras noções da Gramática sejam ensinadas brincando».
Mais tarde, a partir da segunda metade do século XX, com a segunda vaga do feminismo e a possibilidade de livre acesso das mulheres ao ensino universitário, as investigações desenvolvidas por mulheres na área da linguística portuguesa passaram a ter mais notoriedade. É nesta altura que aparecem nomes como Maria Helena Mira Mateus, figura incontornável dos estudos na área da fonologia portuguesa, responsável por adaptar a Fonologia Generativa de Noam Chomsky ao português, com a sua obra Aspetos da Fonologia Portuguesa, publicada em 1975. Foi ainda uma das organizadoras de trabalhos de referência como Gramática da Língua Portuguesa (Caminho, 2003) e Dicionário de Termos Linguísticos (Edições Cosmos, 1991 e 1992). Para além disto, foi igualmente um dos membros fundadores da Associação Portuguesa de Linguística.
Para além do contexto português, encontram-se também várias estudiosas que desenvolveram importantes investigações sobre a língua portuguesa falada pelas comunidades onde se inseriam. É o caso da linguista brasileira Maria Helena de Moura Neves, autora de importantes obras sobre gramática e línguas, das quais se destaca A Gramática de Usos do Português (2000), que se centra, como o nome indica, nos usos do português no Brasil.
No caso moçambicano, a linguista Perpétua Gonçalves é um dos nomes mais sonantes no que concerne aos estudos sobre o português nesse país, tendo desenvolvido, neste âmbito, trabalhos notáveis como A génese do português de Moçambique (2010). Já no panorama angolano, Amélia Mingas apresenta-se como uma figura de destaque, tendo prestado, ao longo da sua carreira, uma especial atenção à situação linguística em Angola, mais precisamente à influência das línguas nacionais desse país no português, visíveis em textos como Interferências do Kimbundu no português falado em Lwanda (1988).
Concluindo, ao longo dos tempos, apesar do caminho sinuoso e dos obstáculos impostos, várias foram as mulheres que procuraram deixar a sua marca na investigação desenvolvida em torno da língua portuguesa. É importante que não se deixe que os seus trabalhos caiam no esquecimento, já que constituem contributos que em muito fizeram evoluir o conhecimento sobre a gramática e a língua.
1. Mantêm-se os chamados "ss" longos – ſ -, os quais se escreviam no começo e no meio das palavras, tanto em textos manuscritos como impressos até ao século XIX. Mais informações, consulte aqui e aqui.