«(...) repare na maneira como temos estas regras todas na cabeça sem reparar nelas. Há falantes de português que passam uma vida a falar sem mácula, mas também sem reparar que lêem o <s> de três maneiras distintas no final de uma palavra.»
Uma discussão com o meu filho levou-me a investigar a origem da nossa letra S. Pelo caminho, ficamos a conhecer uma velha forma da mesma letra que já ninguém usa (excepto os alemães) e ainda as voltas que a letra dá quando se transforma em som nas bocas portuguesas.
O meu filho Simão anda descontente com as letras. Não com as letras todas, mas as letras que estão penduradas na parede ao lado da cama dele. Explico: até há pouco tempo, as camas dos meus dois filhos estavam encostadas a uma das paredes, com uma letra S por cima da cabeceira da cama do Simão e, por cima da cabeceira do Matias, a previsível letra M.
Ora, há umas semanas, trocámos as voltas ao quarto e, agora, cada um deles tem a cama encostada a uma parede diferente. Assim, o Simão é, agora, acompanhado por duas letras e o Matias, coitadinho, está privado de letras. O Matias não reclama, que ainda diz pouco e o que diz é sobre outros interessantes temas deste mundo. Já o Simão reclama: aponta para as letras e pergunta quando é que as pomos no sítio certo (usando palavras mais indignadas). Já lhe disse que um dia destes faríamos o furo necessário na parede do Matias e lá penduraríamos o seu M. Ele insiste para que seja hoje. Eu, com preguiça de furar paredes, peço-lhe que repare que aquelas duas letras são também as consoantes do seu nome: SiMão. Ele faz cara de plo-amor-de-deus: «Então põe as letras na ordem certa!». Eu calo-me. E as letras lá continuam (um M e um S). Desculpo-me: não é fácil encaixar uma sessão de berbequim no dia-a-dia. Ficará para breve.
Enquanto não vou buscar o escadote e o berbequim e tiro um pedaço à parede do quarto deles, decidi escrever textos sobre as histórias daquelas duas letras, para ver se calo o miúdo, que para lá de reclamar sobre a posição das letras no quarto, gosta de ouvir histórias. Pode ser que goste da história da letra S — embora uma história com caracteres do alfabeto fonético internacional não costume ser do agrado dos petizes. O Simão torcerá o nariz, mas talvez o meus caros leitores gostem do que vão ler…
A origem fenícia
A origem do S é uma letra fenícia que representava o som que, em português, representamos por <ch> ou <x> (ou, como veremos, <s>). Os linguistas representam este som, no alfabeto fonético internacional, por /ʃ/. A letra fenícia parece mesmo um W, mas não é...
Esta letra fenícia — que terá vindo de letras mais antigas e estas dos hieróglifos egípcios — deu origem à letra hebraica (ש) e à letra árabe (ش), que representam o mesmo som. Se olharmos com atenção para a letra árabe e a imaginarmos sem os três pontinhos e sem aquela perna à esquerda, vemos como está ali o fantasma da letra fenícia.
Pois bem, os gregos pegaram na mesma letra fenícia e rodaram-na no sentido do ponteiro dos relógios, criando o sigma:
Como não tinham o som do nosso «ch», a letra passou a representar o som /s/.
Uma curiosidade sobre esta letra é a existência de duas formas minúsculas: <σ> e <ς>. Esta última forma é usada apenas no final das palavras. Assim, o nome grego de Ulisses tem as duas letras: Ὀδυσσεύς
O sigma grego acabou por dar origem ao arredondado S latino que ainda hoje usamos:
Ora, curiosamente, o S latino também teve duas formas minúsculas: o nosso <s> e o <ſ>. Olhemos, por exemplo, para este poema de Camões:
Se reparar bem, na segunda linha, temos o S longo, que parece (mas não é) um <f>. Este S minúsculo alternativo deu origem a várias ligaturas, ou seja, junções de letras com uma forma particular. Uma delas representava a junção do <ſ> longo com o <s> simples (que hoje escreveríamos <ss>), como vemos na segunda linha desta edição d’Os Lusíadas, na palavra «assinalados»:
A ligatura ß ainda hoje é usada no alemão, com o nome eszett. Como vemos, nada tem que ver nem com o <B> latino nem com o <β> grego, ao contrário do que podemos pensar ao olhar para o símbolo com pouca atenção.
Excepto nessa ligatura alemã, o <ſ> desapareceu, talvez por ser muito fácil confundi-lo com o <f>. A forma itálica do S longo (<ſ>) acabou por dar origem ao símbolo que os linguistas usam para representar o som do <ch>: /ʃ/.
(Devo avisar que, em linguística, há uma diferença entre representar sons com barras, caso em que falamos de fonemas, e com parêntesis rectos, caso em que falamos de fones. Como não refiro a diferença neste texto, preferi usar sempre as barras.)
Tantos sons (ou seja, /sõʃ/)
Como o latim não precisava de representar o som /ʃ/, as distinções entre o som /s/ e o som /ʃ/, nas várias línguas que usam o alfabeto latino, é muito interessante. O português distingue os dois sons desta maneira: usamos a letra <s> para o som /s/ e o dígrafo <ch> para o som /ʃ/. Já o inglês usa o <sh> para o som /ʃ/, reservando o <ch> para o som /tʃ/ (com excepções). O húngaro tem a particularidade de usar <s> para o som /ʃ/ e o dígrafo <sz> para o som /s/. Assim, o nome do compositor Liszt lê-se com um /s/ antes do /t/. Já o nome da capital em húngaro — Budapest — lê-se com um /ʃ/ antes do /t/ final.
Se virmos bem, a pronúncia húngara do nome da capital é muito parecida com a pronúncia portuguesa da mesma palavra: Budapecht… Isto porque a letra S representa vários sons em português, incluindo o /ʃ/…
Convém lembrar: uma letra não é um som. Uma letra representa um som — ou, aliás, vários sons, dependendo da posição e das regras ortográficas da língua. Em Portugal, o <s> representa vários sons distintos: se estiver no início de uma palavra, representa o /s/, ou seja, uma fricativa alveolar surda… Este «surda» significa algo curioso: as cordas vocais não vibram quando produzimos o som /s/. Quando vibram, já estamos a produzir o som /z/, que é outro dos valores da letra <s>, neste caso, quando está entre duas letras que representam vogais. A única diferença entre o /s/ e o /z/ é mesmo este traço fonético particular. A língua, os dentes, os lábios — está tudo no mesmo sítio. O que muda é a vibração das cordas vocais. Se pusermos os dedos na garganta e prolongarmos os dois sons, conseguimos sentir a diferença. Se a letra for dobrada (<ss>), representa sempre o som surdo.
Se a letra <s> aparecer no final de uma sílaba, já representa outro som: o nosso conhecido /ʃ/ — por exemplo, em «pás». Também poderá representar o som /ʒ/ — que é igual ao /ʃ/, com a diferença de ser um som sonoro (em geral, representamos esse som com a letra <j>). Quando é que a letra <s> representa o som do <j>? Quando a consoante que vem a seguir é sonora… Assim, na palavra «aspa», o <s> representa um /ʃ/ (surdo). Na palavra «asma», o <s> representa um /ʒ/ (sonoro).
(Diga-se que este é daqueles pontos da descrição de uma língua em que mais diferenças existem entre falantes particulares — e entre regiões. Afinal, é destas diferenças que se fazem o sotaque. Tentei descrever um uso comum no Sul de Portugal. No Brasil, a situação é muito diferente e varia de região para região. No Rio de Janeiro, por exemplo, o <s> tem uma leitura muito semelhante à portuguesa.)
Por fim, se o <s> estiver no final da palavra, representará um som diferente dependendo da maneira como começa a palavra seguinte. Assim, se a palavra seguinte começar por uma consoante surda, o <s> representa um /ʃ/; se começar por uma consoante sonora, representa um /ʒ/; se começar por uma vogal, representa um /z/.
- «pás caras»: /ʃ/
- «pás gastas»: /ʒ/
- «pás antigas»: /z/
Peço agora que repare num pormenor: quando dizemos a palavra «três» ou a palavra «treze» seguida de uma palavra iniciada por vogal, e tendo em conta a forma como ligamos as sílabas que terminam em <e> à palavra seguinte, o que sai é algo muito parecido tanto para o 3 como para o 13. Assim, em Portugal, «três anos» e «treze anos» tenderiam a ser pronunciadas da mesma maneira de acordo com as regras habituais da fonética portuguesa. Confundir números tão diferentes e tão comuns é capaz de dar pouco jeito… Assim, os falantes vão criando formas de distinguir os dois números. Uma das estratégias é pronunciar as duas palavras de forma mais pausada do que o habitual («treze [pausa] anos»), não fazendo a ligação entre palavras. Outra estratégia é incluir um /i/ entre «treze» e «anos»: «trezianos» [como bem observou António Callixto, este /i/ aparece na ligação de muitas outras palavras, como «onzianos»]. Também não me admiraria nada que a curiosa tendência de muitos falantes para inserir o som /w/ no final da primeira sílaba de «treze» tivesse algo que ver com esta necessidade de distinguir os dois números (mas esta será uma ideia a estudar mais tarde).
Bem, deixemos a letrinha do meu filho em paz. Mas não termino sem pedir que repare na maneira como temos estas regras todas na cabeça sem reparar nelas. Há falantes de português que passam uma vida a falar sem mácula, mas também sem reparar que lêem o <s> de três maneiras distintas no final de uma palavra. Sabemos usar o português sem precisar de saber como funciona. As regras estão no nosso cérebro sem que as saibamos descrever, pelo menos antes de as estudarmos com atenção — e mesmo assim haverá recantos da língua em que ainda ninguém reparou. Não me canso deste tema também por isso: a língua está dentro de nós, nos nossos cérebros, nas nossas bocas — e não deixa de nos espantar todos os dias.
Texto do tradutor e professor universitário Marco Neves, que o publicou no blogue Certas Palavras em 29 de janeiro de 2020.