« (...) A tecnologia também trouxe problemas e desafios. Como transformar grandes dicionários impressos em dicionários digitais? (...)»
Se houve disciplina afetada pelo boom da tecnologia, ela foi a lexicografia. A partir dos Anos 1970, as novas tecnologias trouxeram à lexicografia recursos inimagináveis poucas décadas antes: estatísticas sobre o uso das palavras que ajudavam a determinar as mais frequentes, a incluir obrigatoriamente no dicionário; acesso facilitado a grandes acervos de dados estruturados, para apoiar o lexicógrafo na confeção de verbetes; bases de dados sofisticadas para alojar os produtos lexicográficos, favorecendo a sistematicidade e o rigor do produto final. Depois, foi a publicação digital, a partir dos Anos 1990, que libertou os dicionários da ordenação alfabética, permitiu acrescentar interligações entre palavras relacionadas, juntar som (e.g. disponibilizando a sua forma sonora), imagem (ilustrações) e movimento (e.g. produzindo-se os primeiros dicionários de línguas gestuais, com vídeos que reproduzem os gestos). Finalmente, vieram a internet e as aplicações móveis, que tornaram o acesso aos dicionários ainda mais fácil, deixando esquecidos nas bibliotecas os velhos dicionários impressos, hoje desconhecidos da maioria, mas portadores de informação fundamental para entender quem e como somos enquanto comunidade de falantes.
A tecnologia também trouxe problemas e desafios. Como transformar grandes dicionários impressos em dicionários digitais? Como fazer caber os verbetes dos melhores dicionários em ecrãs de telemóvel? Como contornar o défice de concentração do leitor, gerado pela hiperleitura (hyper reading, leitura de textos em computador)? Como competir com os motores de busca e outras aplicações computacionais hoje disponíveis?
Atualmente, assistimos a uma reinvenção do que é o dicionário. E precisamos de o reinventar, se o considerarmos um bem a preservar, fundamental na fixação, preservação e desenvolvimento de línguas, culturas e conhecimento.
Fazer um dicionário é atividade morosa e dispendiosa e nem o acesso a tecnologias cada vez mais sofisticadas pode garantir a qualidade do produto final, se este não tiver por trás saber e reflexão sobre as palavras, a forma de as descrever e sobre aquilo que o utilizador espera de e procura num dicionário. Surgem, assim, cada vez mais estudos sobre uso de dicionários; infelizmente, neste como em outros aspetos, a lexicografia de uma das línguas mais faladas do mundo, a portuguesa, tem ficado desguarnecida. A primeira pesquisa sistemática sobre uso de dicionários, que incluiu a língua portuguesa, decorreu no âmbito de um projeto europeu (European Survey of Dictionary use and Culture, 2018).
Para suprir esta lacuna, é hoje lançada uma pesquisa de larga escala, a USODIPO, que visa obter informações sobre o estado atual do uso de dicionários de português no espaço geolinguístico dos países de língua portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste). Pretende-se, ao mesmo tempo, obter um retrato das expectativas e necessidades sentidas pelos utilizadores. Os dados recolhidos, tanto mais valiosos quanto representativos, permitirão fundamentar grandes decisões (e investimentos) a ser tomadas em matéria de lexicografia de língua portuguesa e também de política e planificação linguísticas do português. Essas decisões poderão ser tanto mais democráticas, quanto melhor forem informadas.
Por favor, contribua para estes desideratos, entrando na página da USODIPO e preenchendo o questionário. Muito obrigada.
Artigo da linguista e professora universitária Margarita Correia publicado no Diário de Notícias em 10 de abril de 2023.