«É evidente que a nomenclatura gramatical tradicional tem, como eu disse no início deste texto, objetivo meramente didático, ao passo que a terminologia linguística tem caráter científico.»
Quando abrimos uma gramática, de cara deparamos com uma divisão tradicional dessa obra em quatro ou cinco partes: fonética, morfologia, sintaxe, semântica e, às vezes, estilística. E nela encontramos termos com os quais já somos familiares, como substantivo, adjetivo, adjunto, bem como outros com os quais não temos tanta familiaridade, como fonema, próclise, hiperônimo, etc.
Muitos desses termos remontam às gramáticas latinas de Élio Donato (século IV d.C.) e Prisciano (século V d.C.), que por sua vez os traduziram da gramática grega de Dionísio, o Trácio (século II a.C.). A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) adotou a maioria desses termos, de modo que eles hoje são correntes nas aulas de Língua Portuguesa do ensino básico.
No entanto, muitos desses termos fazem parte atualmente da terminologia técnica da linguística (por sinal, fonética, morfologia, sintaxe, semântica são ramos da linguística) e no âmbito dessa ciência ganharam uma conceituação muito mais precisa e rigorosa do que as definições normalmente apresentadas nas gramáticas normativas, dado o caráter eminentemente pedagógico destas.
De todo modo, é importante ressaltar que, desde o advento da linguística no princípio do século XIX, essa terminologia deixou de ser gramatical e passou a ser linguística.
Mas como, se a gramática é muitos séculos mais antiga que essa nova ciência, que conta apenas 200 anos? Não tem a gramática, por sua antiguidade, precedência sobre a linguística?
Os gramáticos que me desculpem, mas não é bem assim. Em primeiro lugar, de um ponto de vista tanto epistemológico quanto metodológico, a gramática é uma tecnologia derivada da linguística, do mesmo modo como a engenharia é uma tecnologia derivada da física ou a medicina uma aplicação da biologia. E vejam que a engenharia e a medicina são muito mais antigas que a física ou a biologia.
De fato, os egípcios já dispunham de grande conhecimento técnico em engenharia civil, como o provam suas pirâmides, bem como sabemos, por meio de seus tratados de medicina escritos em hieróglifos e também autópsias feitas em múmias, que dominavam a medicina. Aliás, qualquer civilização, por mais antiga que seja, demonstra bons conhecimentos técnicos nessas áreas. E entretanto sabemos que não havia no Egito ou em qualquer outra civilização antiga universidades onde se praticasse a pesquisa científica, logo disciplinas como as que hoje conhecemos como física ou biologia eram absolutamente desconhecidas à época. Mesmo a astronomia, que, junto à matemática, é talvez a mais antiga das ciências, se confundia frequentemente com a astrologia, não sendo cabalmente uma ciência, mas, antes, uma técnica de descrição dos astros com o objetivo de auxiliar a navegação marítima – e, secundariamente, de prever o futuro.
Conceitos como tempo, velocidade, peso, força já existiam muito antes de Galileu ou Newton. Todavia, foram esses sábios que deram a tais conceitos as definições precisas que temos hoje e que os próprios engenheiros, arquitetos e outros profissionais utilizam corriqueiramente em seu trabalho.
Do mesmo modo, palavras como cérebro, artéria e músculo já estavam presentes nas línguas da Antiguidade, sendo que a biologia só se estabelece definitivamente como ciência no século XIX (é contemporânea, pois, da linguística).
O fato é que hoje todos sabemos que espaço, tempo, velocidade, aceleração, carga elétrica, energia são termos de física e não de engenharia. Todos sabemos que célula, neurônio, sistema respiratório, etc., são termos de biologia e não de medicina. O que a engenharia e a medicina fazem hoje é utilizar termos que já foram seus e mesmo do linguajar cotidiano (por exemplo, olho, veia e coração são muito mais usados na linguagem comum ou literária do que nos livros e artigos de medicina).
Além disso, voltando à nomenclatura gramatical, é preciso reconhecer que o modo como os autores de gramáticas empregam certos termos é impreciso e por vezes incorreto.
Em primeiro lugar, o que as gramáticas agrupam no capítulo sobre fonética não é do âmbito da fonética e sim da fonologia, pois não trata dos sons da fala, fenômenos acústicos concretos que são infinitos, e sim dos fonemas da língua, que no caso do português são 33. É que a fonologia, ramo da linguística que estuda os fonemas, entes abstratos de formulação lógico-matemática, só surgiu na década de 1930. Até então, som e fonema eram, para os gramáticos, a mesma coisa.
Quanto à conceituação feita pela gramática de entidades como sujeito, predicado, transitividade, modo, voz e outras, é amiúde superficial, imprecisa e arbitrária, estando não raro sujeita a contradições entre a própria definição e seus exemplos. É forçoso dizer que certos conceitos gramaticais sequer existem no âmbito da linguística, seja por desnecessidade ou por inexistência prática do fenômeno que denominam. Da mesma forma, a terminologia linguística instituiu novos termos quer para renomear com melhor delimitação e mais precisão e rigor científico fatos que a gramática já nomeava, quer para dar conta de fenômenos linguísticos que os gramáticos tradicionais sequer sonham existirem.
É evidente que a nomenclatura gramatical tradicional tem, como eu disse no início deste texto, objetivo meramente didático, ao passo que a terminologia linguística tem caráter científico. Entretanto, não vemos físicos e engenheiros – ou biólogos e médicos – utilizarem termos diferentes para nomear os mesmos conceitos, até porque médicos e engenheiros precisam ter no seu trabalho o mesmo rigor conceitual que os físicos e biólogos. Aliás, a medicina e a engenharia não podem prescindir um minuto sequer de uma abordagem científica, mesmo que seus objetivos sejam práticos e tecnológicos. São esses mesmos termos que aparecem nas aulas de física ou biologia do ensino básico, o que já não ocorre com os termos linguísticos nas aulas de português.
Infelizmente, no campo da língua há um divórcio aparente – para não dizer uma guerra – entre a ciência que estuda a linguagem verbal e a tecnologia que ensina a redigir textos na chamada norma-padrão.
Texto d linguista brasileiro Aldo Bizzocchi publicado no mural Língua e Tradição no Facebook, em 7 de novembro de 2022.