Os nomes de lugar (topónimos) são sempre objeto de grande curiosidade. Muitos são de significação transparente, porque vêm de nomes comuns, como acontece com Porto ou Rio (de Janeiro). Outros resistem à interpretação imediata – são nomes opacos –, e em Portugal contam-se muitos exemplos como os de Braga, Lisboa ou Évora. Trata-se geralmente de nomes de filiação não latina, numa situação análoga à dos numerosos topónimos de origem não portuguesa do Brasil, Angola ou Moçambique. E há topónimos que replicam outros, como ocorreu tantas vezes no contexto colonial: são exemplos Nova Iorque, evocativo da cidade inglesa de Iorque, ou, no estado brasileiro do Pará, Santarém, duplicação da Santarém lusitana. Mas, quando se trata dos estudos sobre toponímia (toponomástica), o exame dos topónimos não dispensa certas exigências na recolha e interpretação dos dados. Além disso, os juízos sobre a motivação e a etimologia dos nomes analisados hão de ser sempre cautelosos e ponderados.
Vêm estas considerações a propósito das etimologias propostas em Factos Escondidos da História de Portugal – O que Os Compêndios Não Nos Dizem (Lisboa, Oficina do Livro, 2021), do jornalista José Gomes Ferreira (JGF). Como três nomes geográficos – Portugal, Canadá e Califórnia – são explicados de forma perentória nesta obra, seguem-se outros tantos comentários no intuito de mostrar que tais topónimos ou são etimologicamente mais interessantes do que o autor faz crer (caso de Portugal) ou muito provavelmente não são o que ele afirma (quando se refere a Canadá e Califórnia). Apresentam-se estes três nomes na ordem inversa da do livro:
1. «O nome [Portuga] já existia, de facto. Mas a associação do nome Portugal a um símbolo ou selo do primeiro deste território, D. Afonso Henriques, trouxe-lhe um significado muito mais complexo, profundo e concreto […].» (p. 371)
Sobre Portugal, as propostas dos estudos de toponímia não são nem menos complexas nem menos profundas e concretas que as hipóteses esotéricas e iniciáticas. Seguindo Leite Vasconcelos (Revista Lusitana, vol. XXIX, p. 50 e ss.), considera-se Portugal como o resultado da expressão Portum Calem, evoluindo esta para Portucale e depois para a presente configuração. Trata-se, portanto, do «Porto que se chama Cale», desenvolvendo-se também várias propostas sobre a origem e o sentido de Cale (ou Cales), tido por pré-latino e relacionável com uma raiz *cal-, com o sentido genérico de «pedra», talvez igualmente implicado na formação de Callaecia, donde se moldou depois Galiza. Sendo topónimo muito antigo, a investigação etimológica confronta-se com falta de documentos, e, portanto, há quem conteste Leite de Vasconcelos. Assim, para o historiador A. Almeida Fernandes, Portugal era resultado de um duplo derivado de portus ou porto: Port-uc-al, cujos sufixos -uc- e -al, conforme Almeida Fernandes interpretava (de forma não muito clara), realizariam a «essência do nome» e «a extensão tópica», respetivamente. O nome do que começou por um lugar e a sua região teria, portanto, génese numa expressão bem trivial, talvez algo como «zona portuária». No entanto, é esta hipótese menos plausível, dada a forma Cale se encontrar documentada como topónimo na mesma região que a expressão Portus Cale.
2. «A origem de Canadá não é mais do que a expressão portuguesa canada.» (p.139)
Considera-se no livro que Canadá alude à Quinta da Canada, em Tavira, terra natal de Gaspar Corte Real, para alguns, o primeiro descobridor da costa leste canadiana. De facto, o vocábulo parónimo canada tem, entre outros significados, os de «azinhaga, atalho» e «fila de estacas, através de um rio, para indicar o vau» e «sulco formado pelo rodar dos veículos» (cf. Cândido de Figueiredo, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1913, versão em linha sob o título de Dicionário Aberto). A verdade é que a etimologia de Canadá, como nome de região (corónimo) e depois país, continua a não reunir consenso. Mas a tese mais aceite é ter origem numa língua da família iroquesa que significava «aldeia, povoação, assentamento, terra». Dá força à hipótese indígena o facto de em mohawk, pertencente à referida família linguística, se atestar kaná꞉ta, com o mesmo significado. O nome já terá sido usado em francês pelo navegador e conquistador francês Jacques Cartier em 1535, generalizando-se a todo o vale do rio S. Lourenço (na imagem).
3. «O nome do estado norte-americano da Califórnia provém da praia da Califórnia em Sesimbra e da Ribeira da Califórnia em Palmela, nomes registados [ano do descobrimento ou posse oficial do território da Califórnia por João Cabrilho, supostamente português].» (p. 251)
Sem discutir outra afirmação feita no livro, a de Califórnia figurar «nos mapas e documentos da região antes de 1542» (ibidem), valeria a pena, apesar de tudo, ter identificado precisamente os tais documentos que justificam a anterioridade da Califórnia sesimbrense em relação à região norte-americana homónima. Entretanto, a tese etimológica consensual está longe de confirmar a tese do autor: trata-se de criação ou apropriação de forma preexistente por parte do escritor castelhano Garci Rodríguez de Montalvo (c. 1450-c.1510), que a incluiu no romance de cavalaria Las Sergas de Espandián.
Observe-se, entretanto, que, em Portugal, Califórnia ocorre não apenas na península de Setúbal, mas também se encontra (ou encontrava) noutras regiões (cf. o visualizador CIGeoE-SIG do Centro de Informação Geospacial do Exército). Poderia, pois, julgar-se que, em português, se emprega ou já se empregou califórnia como nome comum, o que até se atesta na Revista Lusitana (XXXVI, 1938, p. 96), na qual se definia a palavra como «sítio abafado, soturno, quente, onde não bole aragem», abonando-a com a frase «isto é uma califórnia; não se pode aqui parar com calma.» Mas importa realçar o que a mesma fonte acrescenta em parêntesis: «Parece haver aqui influência da palavra forno.» Se o uso comum de califórnia foi de facto sugerido pela semelhança parcial com forno, então, não será descabido propor a precedência do nome próprio, só mais tarde se recategorizado como nome apelativo, dando-se o caso de alguns usos darem lugar a uma retoponimização, como forma de destacar um lugar pelas altas temperaturas que nele se fizessem sentir. Tampouco será de excluir que outras ocorrências de Califórnia no território português se devam à força sugestiva deste nome próprio (é região miticamente investida) ou até à memória da emigração registada em nomes de casas particulares e denominações comerciais. São hipóteses que dispensam, por enquanto, formulações categóricas e requerem investigação aturada noutra ocasião que não a destes apontamentos.
Em síntese, deixando de lado Portugal, cuja etimologia JGF não analisa por achar irrelevante, vê-se que, sobre Canadá e Califórnia, as teses existentes não são incontestáveis. O contributo do autor em apreço seria, portanto, de aplaudir se conseguisse criticamente pô-las em causa. Mas não é isso que acontece de facto, pois trata-se, afinal, de propostas muito menos fundamentadas do que as que têm atualmente aceitação.