«(…) Numa curta viagem pela memória do ano, eis a minha selecção (por ordem alfabética) […]»
Aproxima-se o dia do anúncio dos dez vocábulos para a votação da “Palavra do ano”, uma interessante iniciativa da Porto Editora desde 2009.
Enquanto aguardamos, resolvi fazer uma outra escolha: a das 10 palavras mais feias que por aí andam de braço dado com modismos ou encavalitadas em posologia tecnocrática. Fealdade, evidentemente subjectiva. Ou feiura, que só não está entre as eleitas porque ninguém a balbucia. Para mim, a estética da palavra é uma mistura quase sinestésica do som, da textura silábica, do bom casamento (ou não) entre vogais e consoantes, da macieza (ou falta dela), da cor que, por vezes, lhe associo. Numa curta viagem pela memória do ano, eis a minha selecção (por ordem alfabética):
1. Alavancagem, às vezes até sem embraiagem e engrenagem. Muito em voga na linguagem financeira e empresarial. Associo-a a tacto áspero, com vogais sem travagem. Mais tarde ou mais cedo, antevejo que vai servir para medir o grau e intensidade do assédio sexual.
2. Bascular, que não devemos confundir com basculhar ou vascular. Verbo muito usado no futebol, ainda que sem conta, peso e medida. Conjugação retorcida, como por exemplo, no imperativo “bascula tu!” ou no condicional “bascularia”. Além do mais, palavra a preto-e-branco entre as vogais a e u.
3. Disrupção. Pior só o sinónimo rompedura. Associo-a à memória do som agudíssimo do giz arranhando a pobre lousa escolar.
4. Empoderamento. Olfactivamente, o substantivo tem falta de refrigeração, por isso o associo a podre. Tem uma forma axadrezada, o que não significa necessariamente “xadrez” para o empoderado. O verbo é do mais divertido que há. Imaginemos um diálogo: «Empodera-o tu! Não senhor, melhor seria se tu o empoderasses…»
5. Engajar. «Engaja, pá, antes que eu engaje». Eis o engajamento em todo o seu verbal esplendor, indicativo e conjuntivo. Quando ouço estas palavras logo olho para os sapatos para ver se precisam de engraxamento. E do castanho me lembro.
6. Governança. Palpita-me que anda por aqui ideologia de género. É que governo é palavra masculina e governança é feminina, mesmo que juntas com outro palavrão, governabilidade. Cá para mim, associo-a a cozinha, bons pratos e olfacto guloso. E recordo, gostosamente, o governo da governanta da “família Bellamy”.
7. Incumbente. Que me perdoe um qualquer intendente desta palavra incumbente, mas só a retenho no sentido botânico, ou seja pensando na parte da planta inclinada para a terra. Palavra escura, senão mesmo tétrica, não por causa da planta, mas da terra para onde se vai.
8. Paulatinamente. Isto é: latinamente e com pau. Por fases. E atempadamente, a sua irmã siamesa, qual delas mais feia e disforme. Associo-as aos equipamentos desportivos às riscas. Não sei porquê.
9. Performante. Mais um anglicismo, tal qual o performativo. De todas estas palavras é a que cheira melhor, não fosse parente da perfumaria. Mas tirando isso, é como se em vez de um saboroso bacalhau com batatas, grelos e ovo cozido me dessem, em versão “nouvelle cuisine” minimalista, um «bacalhau confitado com pastel crocante de grão de bico, acelga selvagem e sêmola de milho».
10. Resiliência. Lamento, mas já não a tenho (a dita resiliência) para sequer a comentar. Nem para a alocar (esta seria a 11.ª…).
Peço desculpa por ter deixado de fora uma série de palavras que me merecem toda a desconsideração. Não tiveram “cabimento” (outra, a 12.ª).
in jornal “Público” de 16 de novembro de 2017, na coluna “Tudo Menos Economia”. Respeitou-se a grafia original, conforme a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.