«O emagrecimento do Estado ou o desmantelamento do Estado? Austeridade ou empobrecimento? Alívio fiscal das empresas ou benefícios ao capital (que com C maiúsculo ainda pesa mais)? Liberalização do aborto ou descriminalização da interrupção voluntária da gravidez? Flexibilização do mercado de trabalho ou desregulamentação do mercado de trabalho? Economia de mercado ou capitalismo? (...) Em tempos de crise, há mais “insolvências” do que duras “falências”, sobreabundam as amoráveis “almofadas financeiras”, já não se raciona – racionaliza-se. Racionalizar é tornar racional, submeter ao domínio da razão. Quem poderá erguer-se contra os “cortes”? Só um indivíduo desprovido de razão. Curiosa é também a polidez (ou a hipocrisia?) da “inverdade” que vai triunfando sobre a “mentira”». Uma vintena de exemplos neste artigo do autor à volta das «distorções danosas» resultantes do (mau) uso de palavras e termos escritos e ditos no espaço mediático português.
[in "Público" de 20/02/2015]
Só um ingénuo acredita que a realidade pode, por intermédio das palavras, ser descrita de forma neutra.
O emagrecimento do Estado ou o desmantelamento do Estado? Austeridade ou empobrecimento? Alívio fiscal das empresas ou benefícios ao capital (que com C maiúsculo ainda pesa mais)? Liberalização do aborto ou descriminalização da interrupção voluntária da gravidez? Flexibilização do mercado de trabalho ou desregulamentação do mercado de trabalho? Economia de mercado ou capitalismo? Entre umas e outras… vai todo um programa. A escolha das palavras obedece a uma lógica de propaganda que, como é sabido, quanto mais insidiosa, mais eficaz.
Em tempos de crise, há mais «insolvências» do que duras «falências», sobreabundam as amoráveis «almofadas financeiras», já não se raciona – racionaliza-se. Racionalizar é tornar racional, submeter ao domínio da razão. Quem poderá erguer-se contra os «cortes»? Só um indivíduo desprovido de razão. Curiosa é também a polidez (ou a hipocrisia?) da «inverdade» que vai triunfando sobre a «mentira».
Muitas palavras são empregadas comummente com um significado que contradita ou extravasa, para lá do razoável, o étimo. Contemplar era originariamente estar com o templo, desaguando hoje em construções frásicas como o seu tarifário não contempla mais de cem mensagens para outras redes, o extracto do cartão de crédito não contempla... O horror, o horror!
Ortodoxo – hodiernamente utilizada de forma depreciativa para definir uma pessoa quadrada, obtusa, sem elasticidade de pensamento – procede do grego orthódoxos, pelo latim orthodoxu-, «que pensa correctamente». Observe-se que ortografia é a grafia correcta. Radical – palavra da moda para designar um partidário do extremismo, seja reaccionário ou revolucionário, quando não um bombista – provém do latim radicale-, «de raiz». Ir à raiz dos assuntos, dos problemas para tentar compreendê-los será modernamente algo deletério? Repare-se que usamos o verbo radicar no sentido etimológico, isto é, no sentido de algo que tem a sua raiz, a sua base – como usamos bem o verbo arraigar que, não por acaso, tem o mesmo étimo (do latim arradicare, formado de radicare). Fundamentalista é no idiolecto que por aí circula uma criatura incapaz de dialogar, com a verdade no bolso e o desejo de matar para a impor. Fundamentalista e fundamentalismo vêm de fundamental, que vem de fundamento, alicerce, base firme.
Ordinário, no seu significado corrente, extravasa largamente o étimo ordinãriu- e a acepção primeva “regular”. Pense na palavra extraordinário (extra + ordinário), o que salta da regra, do uso, do regular – positiva ou negativamente. Percalço, que todos utilizamos para incidente desagradável, é, acima de tudo, uma vantagem, um benefício. Procure num dicionário os primeiros significados e surpreenda-se. Ademais, percalçar é – em qualquer dicionário que o acolhe – lucrar, ganhar. E percalço é derivação de percalçar.
Propomos a aniquilação dos sentidos correntes dos termos inventariados? Preferimos dizer que sugerimos que se revitalizem – utilizando-as! – as adequadíssimas acepções que respeitam o étimo.
Casos há em que devemos guardar o étimo, sem permitir, enquanto é tempo, distorções danosas da consagração pelo uso (ou do erro a vencer pelo cansaço?). Brutal é adjectivo para bruto (como bestial é para besta) – brutal é, portanto, irracional, inculto, estúpido, cruel, desumano, muito rude e grosseiro. A sua omnipresença nas redes sociais e num público mais jovem vem disseminando-se a outras esferas e a outras idades. Quase tudo o que é muito bom – ou que provoca uma agradável sensação momentânea – é hoje brutal! Além do olvido do étimo, esta muleta verbal empobrece e afunila a língua portuguesa ao negligenciar a sua diversidade vocabular. «Bom será não ignorar nem esquecer que o português não precisa de mendigar indignamente das demais línguas. A um termo francês, inglês, etc., correspondem por vezes em português dois, três, quatro e até mais», escreveu o mestre Vasco Botelho de Amaral no livro A Bem da Língua Portuguesa.
Atentemos em fábula. Como assinala o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, fábula procede do latim, de fãbŭla, «vozes do povo, boatos; questões privadas, assuntos de família; narração sem garantia histórica, assunto mítico; peça de teatro; conto, fábula, apólogo». No Vocabulario Portuguez e Latino, Raphael Bluteau assevera: «PATRANHA: Conto fabuloso.» The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory define fábula como uma narrativa curta (em prosa ou em verso), normalmente povoada por seres não humanos, e que procura estabelecer uma moral.
Fabuloso, na acepção de uso corrente, dista dos significados do verbo «fabular», dos adjectivos e nomes «fabulista» e «fabulador», e dos nomes «fabulação» e «fabulário», que assentam em «fábula» e que não têm – nenhum dos termos – o sentido de magnífico. Não raras vezes, estes vocábulos são (bem) empregados para diminuir a credibilidade de uma pessoa ou de uma narrativa – o que tem sustentação dicionarística.
Fantástico, enquanto nome, é um género literário e cinematográfico. Apenas a título de exemplo, o E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia acolhe o género fantástico. Enquanto adjectivo, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista: «1. Quimérico, fingido, que nã tem realidade e só existe na imaginação. 2. Que pertence à fantasia; fantasioso, imaginativo. 3. Aparente, simulado, fictício. 4. Jactancioso, blasonador. 5. Caprichoso, exótico, extravagante.» O Dicionário Aberto escolhe «fantasmal» como sinónimo/variante de fantástico.
Certifique-se o leitor de como Camões na sua epopeia, na estrofe XI do Canto I, utilizou quer «fantásticas» quer «fabulosas».
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas;
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro,
E Orlando, inda que fora verdadeiro.
O que significa formidável? Que infunde medo, terror. Leia-se o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado: «Do latim formidabĭle-, “temível, temeroso.”» Consulte-se o dicionário etimológico do Brasil disponível em linha: “Procurando num bom dicionário o significado da palavra "formidável", o primeiro significado que se encontra é "pavoroso, diabólico, horrendo, assustador". E não faltam exemplos clássicos.”
Um desses exemplos é o poema Versos Íntimos de Augusto dos Anjos.
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável! [...]
Outro é o poema Uma Criatura de Machado de Assis:
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.[...]
E temos Fernando Pessoa:
Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra –
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.
Seu formidável vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
O Dicionário do Português Atual Houaiss regista como próprias de linguagem informal as acepções «óptimo, excelente, fantástico». Os dicionários acolhem – uns mais cedo, outros mais tarde – a grande maioria dos significados que a maioria dos falantes atribui às palavras. Mas veja o leitor o sinónimo/a variante que a mais recente edição do Houaiss atribui a formidável. Quer o leitor adivinhar? É «HORRIPILANTE»!
O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, mais favorável à consagração pelo uso, regista «1. muito grande 2. que inspira terror; terrível 3. que provoca medo; temeroso 4. que infunde respeito 5. espantoso; excelente; fantástico; maravilhoso». Só na quinta e última acepção encontramos o espelho da utilização corrente!
O Dicionário de Língua Portuguesa da Texto Editores assinala o étimo e o seu significado («que faz temer»), atribuindo os significados «medonhamente grande; pavoroso; horroroso; que impõe respeito; descomunal; colossal». Só no final, com a ressalva da marca de linguagem «familiar», regista «extraordinário; fantástico; excelente». Acresce que a palavra «formidoloso» tem os significados «formidável; que inspira medo, pavor; medonho».
Até os dicionários digitais, sublinhe-se até, dada a sua vertiginosa consagração pelo uso, mantêm enquanto primeiras acepções «pavoroso», «medonhamente grande», «que inspira terror». O Dicionário Aberto consagra apenas «Medonhamente grande; terrível; pavoroso; temeroso», dando o seguinte (e único) exemplo de emprego do vocábulo – «incêndio formidável».
Verdade que outras palavras são empregadas comummente com um significado que contradita ou extravasa para lá do razoável o étimo, mas «formidável», tal como «fabuloso» e «fantástico», são casos especiais dada a quantidade de sinónimos que temos na língua portuguesa para maravilhoso, óptimo, boníssimo, excelente, magnífico,magnificentíssimo, mirífico, incrível, admirável, sublime, esplêndido, deslumbrante, grandioso, extraordinário, sensacional, soberbo, superbíssimo, deslumbrante, brilhante, espectacular, fenomenal e tantos, tantos, tantos outros. A sinonímia variegada permite-nos escolher aquilo que Flaubert procurava – le mot juste. Cada palavra tem a sua origem, respiração e atmosfera próprias, isto é, cada palavra tem o seu étimo, o caudal de escritores que e como a usaram, a sua musicalidade. Espectacular refere-se a espectáculo, sensacional a sensação, fenomenal a fenómeno, incrível a algo em que não se crê, e por aí afora.
Uma explicação para a utilização de formidável enquanto medonho e maravilhoso pode ser encontrada na ambivalência que determinadas pessoas ou coisas provocam em determinadas pessoas. Como se a maravilha superlativa pudesse atemorizar. Camões, no Canto X d'Os Lusíadas, fala-nos do «Rei temido e amado».
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E a sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.
Encontramos essa ambivalência na utilização de palavras como tremendo (que vem do latim tremendu-, terrível, horrível), estupendo (espantoso e maravilhoso, como afiança José Pedro Machado), espantoso (inicialmente, o que assustava e atemorizava), assombroso (com origem na palavra «sombra», palavra mais próxima das trevas do que da luz).
Versão completa do artigo publicado no jornal "Público" de 20 de fevereiro de 2015, com o título "Pare, escute e pense – da importância das palavras". Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida pelo diário português.