«Na sociedade portuguesa do pós-1974 foi terrível a estigmatização de que a comunidade cabo-verdiana foi alvo.»
Cabo Verde celebra [em 5 de julho de 2021] o seu 46.º aniversário de independência. No país, a língua oficial portuguesa convive, em situação de diglossia, com a língua nacional do país, o cabo-verdiano. A língua cabo-verdiana é um crioulo de base lexical portuguesa; pertence ao ramo dos crioulos afro-portugueses da Alta-Guiné, da família dos crioulos de base portuguesa. Além de língua materna de quase todos os cabo-verdianos, ela é língua segunda ou língua de herança dos descendentes da numerosa diáspora espalhada pelo mundo. É, ainda, língua cultural e artística por excelência, presente na poesia, nas canções, na música cabo-verdiana.
Os crioulos surgiram em sociedades tão diversificadas culturalmente que não é possível a comunidade adotar nenhuma das línguas naturais faladas nesse contexto, como aconteceu frequentemente na sequência dos Descobrimentos e da colonização. Por isso existem(iram) tantos crioulos, muitos de base portuguesa. Na ausência do domínio da língua do colonizador e na de uma língua natural capaz de ser veicular, estas comunidades desenvolveram pidgins, i.e. sistemas linguísticos rudimentares, que permitem estabelecer comunicação mínima entre os membros da comunidade e entre estes e os colonizadores. Com frequência, chega um momento em que as crianças transformam o pidgin na sua língua materna, por não dispor de outra língua natural que desempenhe esse papel; essa geração constitui a primeira de falantes nativos da nova língua natural, crioulo, que, tal como acontece com todas as demais línguas naturais, se irá enriquecendo e complexificando lexical e gramaticalmente até se tornar uma língua natural capaz de desempenhar todas as funções que uma língua pode desempenhar.
A língua cabo-verdiana é o crioulo mais antigo ainda falado, o de base portuguesa com mais falantes nativos, aquele que é mais estudado e que mais próximo se encontra de adquirir oficialidade (pelo menos na letra da lei). Apesar disto, tal como acontece com a generalidade dos crioulos, esta língua é muitas vezes, fruto de ignorância e intolerância, encarada como "português mal falado", "linguajar", "dialeto", não porque seja uma língua "inferior", que não é, mas por ter nascido em contexto de dominação e ser falada pelas franjas mais desfavorecidas da população; o uso de uma língua própria, diferente da dominante, contribui para que a comunidade que a fala seja ostracizada, estigmatizada e veja a sua integração social e o seu acesso à plena cidadania bastante dificultados.
Portugal não constituiu exceção a esta regra. Na sociedade portuguesa do pós-1974 foi terrível a estigmatização de que a comunidade cabo-verdiana foi alvo. Lembro-me de fake news e mitos revoltantes que circulavam, e.g. na Grande Lisboa, sobre os cabo-verdianos, que viviam em verdadeiros guetos, como a ainda tristemente célebre Cova da Moura. Na escola, os meninos cabo-verdianos, que não falavam português, eram os eternos repetentes até se tornarem os novos desistentes. A situação melhorou: a sociedade portuguesa conseguiu, também ela, sair do seu gueto de ignorância e intolerância, e ser hoje maioritariamente feita de cidadãos; porém, não só sei que ainda temos muito a fazer, como me desespera o retrocesso a que assisto.
Cabo Verde está, hoje especialmente, de parabéns pelos seus 46 anos de idade. O seu povo está-o sobretudo pela língua, a arte, o engenho, a resiliência e por ter transformado o "país improvável" num dos mais bem-sucedidos países de língua portuguesa.
Crónica publicado no Diário de Notícias em 5 de julho de 2021.