Contexto sociolinguístico
Cabo Verde é um arquipélago com duas línguas em contacto, caracterizado por um bilinguismo extensivo, dominando a Língua Cabo-verdiana na fala e a Língua Portuguesa na escrita, ou seja, com níveis diferenciados nas duas línguas: a Língua Cabo-verdiana, materna, nacional e veicular, da afetividade e da identidade e a Língua Portuguesa, língua segunda, objeto e meio de ensino, da comunicação internacional e da administração e, também, fator de identidade nacional, para muitos, quanto mais não seja por ser a língua oficial. Do ponto de vista social, as duas línguas estão numa relação diglóssica, baseada na oposição escrita formal/fala informal, em que a Língua Portuguesa é língua predominante das situações formais orais e das situações de escrita (compreensão e produção), enquanto a Língua Cabo-verdiana, não ensinada e não escrita de modo sistemático, assume funções na comunicação oral quotidiana, verificando-se embora uma clara extensão da Língua Cabo-verdiana para as situações orais formais e para a compreensão e produção escritas e uma mais fraca extensão da Língua Portuguesa para os domínios menos formais, inclusive no seio familiar (Lopes, 2016).
O nascimento de um povo, de uma língua e uma cultura
Cabo Verde é um país arquipelágico formado por 10 ilhas dispersas, descoberto pelos portugueses em 1460.
O povoamento deste arquipélago foi assinalado por brancos, mouros, negros e mestiços porque quando o colonizador chegou à primeira ilha não encontrou: “Nem homens nus/ nem mulheres nuas/ espreitando/ inocentes e medrosos atrás da vegetação…/ Havia somente/as aves de rapina/ de garras afiadas/ as aves marítimas/ de voo largo/ as aves canoras/assobiando inéditas melodias./ E a vegetação cujas sementes vieram presas/ nas asas arrastadas para cá/ pelas fúrias dos temporais1.”
Assim, devido à ausência total de nativos em todas as ilhas, o colonizador lançou mãos de um grupo heterogéneo para o povoamento das ilhas, sendo a primeira a de Santiago que viria a albergar a primeira cidade da África Ocidental, Ribeira Grande, hoje, Cidade Velha, declarada, pela UNESCO, património mundial da humanidade em 2009.
Segundo reza a história, em 1462, início do povoamento, a Ribeira Grande recebia os primeiros colonos europeus, entre os quais alguns espanhóis e famílias do Reino, de apelido Dias, Fernandes, entre outros. O donatário Noli distribuiu-lhes terras e escravos, e começaram a tentar-se várias culturas, com sementes importadas do Reino e outros pontos, dos quais o algodão foi a que se anunciou mais lucrativa e se tornou mais tarde a principal exportação. Às duas capitanias chegavam da Guiné, carregadas de escravos, muitas caravelas, que para o regresso a Lisboa carregavam algodão e outros produtos nativos.
Entretanto, para se estabelecer contacto, o branco falava português e os escravos, como desconheciam por completo a língua do colono e eram originários de etnias diferentes e falantes de línguas diversas e não sendo capazes de reproduzir o que ouviam, usavam todos os recursos possíveis para comunicar.
Porque, ao branco, o que mais lhe interessava era o sucesso da sua missão, não se preocupava com a gramática ou as deturpações da língua provocadas pelo negro e, naturalmente, aceitava o que vinha da boca deste, e para interagir com o negro repetia exatamente o que ouvia. E desta confluência de diversas línguas africanas e o português, nasceu o crioulo. Daí a referência de António Carreira à formação, nas ilhas de Cabo Verde, de um crioulo da confluência de várias línguas africanas e do português, embora essa não tenha sido a língua cabo-verdiana propriamente, mas uma espécie de protocrioulo que cumpria as funções de estabelecer a comunicação entre brancos e negros e entre elementos negros que eram provenientes de diferentes etnias e grupos linguísticos que não possuíam um código comum que lhes permitisse a comunicação.
Dada a imposição cultural e política, as pessoas que tomaram parte na colonização do arquipélago eram originárias de diversas etnias, por isso, falavam diversas línguas e dialetos e, geralmente, não se entendiam entre elas. Para além disso, o dominador com o intuito de reduzir a resistência cultural e a força reivindicativa dos escravos, não permitia a concentração, num mesmo espaço geográfico, de elementos de uma mesma etnia. Entretanto, por necessidade de comunicar, o dominador foi obrigado a aceitar os “desvios” do seu sistema linguístico tanto nas relações laborais com o escravo, como também na intimidade da sua relação com a mulher negra, dada a inadaptação da mulher branca ao clima e ao ambiente2.
É devido a essa mistura entre brancos e negros e entre negros originários de regiões diversas do continente, que segundo António Correia e Silva (2001:176)
“A sociedade insular quinhentista é... caracterizada...pela indefinição étnico-cultural dos filhos da terra.”
E para Cardoso (2005:21):
“Os híbridos culturais não eram apenas resultantes do cruzamento entre o branco e a escrava negra, mas também do cruzamento entre escravos de diferentes etnias, estando todos marcados pela indefinição cultural e pela necessidade de criar uma identidade própria.”
Esta é, pois, uma sociedade marcada pela indefinição cultural devido à perda da sua cultura original segundo Davidson (1988:45-46) porque:
“Em Cabo Verde não havia uma população verdadeiramente nativa e os brancos e quase brancos nunca conseguiram impor a cultura portuguesa, a não ser no plano formal e oficial. Saindo da escravidão, os negros tinham perdido a sua cultura original e tinham adquirido outra e foi essa cultura cabo-verdiana que sobreviveu.” (Davidson (1988) apud Cardoso (idem: ibidem))
Assim, nasceu um povo, uma cultura e uma língua do cruzamento entre povos de línguas, costumes, culturas, religiões, hábitos diversos.
1. Poema Prelúdio de Jorge Barbosa
2. Cf. Freire, 2007, Pág. 22.
Referências bibliográficas
CARDOSO, Ana Josefa. (2005). As interferências linguísticas do caboverdiano no processo de aprendizagem do português. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Universidade Aberta.
FREIRE, M.ª Goreti. (2007). O ensino do português (L2) a partir do caboverdiano (LM). Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
SILVA, António Leão Correia. (2001). “Povoamento e Formação da Sociedade ” in ALBUQUERQUE, Luís e SANTOS, Maria Emília Madeira (Coord.) (2001) História Geral de Cabo Verde – Vol. I, 2ª edição, Lisboa / Praia, Instituto de Investigação Científica Tropical e Instituto Nacional de Investigação Cultural Cabo Verde.
Ler também:
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (II) – As funções atribuídas às línguas cabo-verdiana e portuguesa em Cabo Verde
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (III) – Língua, representação e autoimagem em Cabo Verde
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (IV) – Os resultados de um inquérito
Estudo desenvolvido por Goreti Freire, professora da Universidade de Cabo Verde, repartido por mais dois textos que desenvolvem diferentes vertentes do assunto.