« (...)No discurso oral do dia a dia, o «pegar e [verbo]» é supernormal. (...)»
«Aí eu peguei e gritei "independência ou morte! Kkkkk!», teria dito D. Pedro I aos amigos no Bar do Ipiranga. Tá, mas pegou o quê? Ar, a espada, o cavalo, a Maria Leopoldina, um megafone?
Você já se pegou falando o verbo pegar sem que ele fosse necessário? «A gente pega e vai pro centro, depois pega e compra alguma coisa e, quando vê, já pegou e voltou pra casa.” Perceba como as conjugações do verbo ‘pegar’ são tão dispensáveis quanto camisinha em convento – ou não seriam? Será que esse "pegou e" não significa nada?
Desde o início do namoro, eu já pegava no pé de minha senhora com algumas manias da fala dela. Quando ela soltava um «aí eu peguei e falei», eu de imediato a interrompia com um «pegou o quê? Um microfone?» Sim, eu pegava pesado... Olha, ela era muito paciente comigo. Não sei como ela não pegou ranço de mim.
O fato é que «pegar e fazer alguma coisa» é uma expressão bem característica da língua portuguesa falada no Brasil. Em muitos lugares, o conectivo e simplesmente some. As pessoas falam algo assim: «eu peguei saí de perto»; «eu peguei parti pra cima». Tá, mas de onde surgiu essa mania de pegar e coisar as coisas? Pega essa!
Pegar vem do latim picare, surgido de pix. Não, não tem relação alguma com esse sistema atual de transferências monetárias. Pix, que gerou piche em português, era uma resina pegajosa usada para grudar objetos. Picare e, depois, pegar só tinham o sentido de colar. É daí que, cola, em espanhol, é pegamento. Ah, é por isso que, para algo grudento, falamos pegajoso e para o sentimento de querer estar sempre junto, dizemos apego.
Então, com essa ideia de «aderir, colar», pegar passou a ter a ideia de «segurar, prender». Daí para frente, os possíveis significados da palavra só foram se derivando e aumentando. Hoje, pegar é um verbo bastante polissêmico, com 26 acepções no dicionário Houaiss. Imagine para um estrangeiro como é difícil traduzir um verbo que pode ter 26 interpretações diferentes.
Olha que loucura: «Era para eu pegar minha namorada na casa dela pra gente pegar uma praia, mas meu carro não pegava. Então, peguei um táxi e, para chegar mais cedo, pegamos um atalho. No final, fui pego de surpresa, pois a peguei se pegando com outro. Eu peguei o cara pelo cabelo e a gente se pegou no soco. Ela pegou barriga e eu peguei um ano de cadeia.»
Sendo um verbo «pau pra toda obra», o pegar começou a aparecer em várias frases de sequência de ideias. Exemplos: «Eu peguei meu filho e o levei à escola» poderia ser substituído por «Eu levei meu filho à escola». Em «temos que pegar esses bandidos e prendê-los na cadeia«, poderíamos trocar por «temos que prender esses bandidos na cadeia». Vemos aí como pegar já começa a ser meio desnecessário.
E se jogássemos o objeto direto para a segunda parte da frase? Em vez de «Eu peguei meu filho e o levei à escola», teríamos «Eu peguei e levei meu filho à escola». «Temos que pegar e prender esses bandidos na cadeia».
Pronto! Temos aí o começo de um pegar que passou a ser apenas um auxiliar de verbo. Desde o século passado, começamos a empregar pegar até quando não se pegava nada justamente porque o verbo pode assumir vários sentidos. Pegar, no entanto, não se torna um completo inútil na frase. Ele deixa de ter aquele sentido inicial de «segurar, prender, agarrar» e passa a assumir outras funções. Mostro alguns:
• Denota uma ação repentina: «Ela pegou e saiu.» (Veja: é diferente de, simplesmente, «ela saiu».);
• Realça uma ação em sequência: «Ele me chamou de feia. Aí, eu peguei e falei que feio era ele.» (Note como, na maioria das vezes, o «peguei e fiz algo» vem depois de aí, daí ou então.);
• Dramatiza uma ação: «Não aguentei, peguei e vim para cá» é mais chamativo que «não aguentei e vim para cá»;
• Demonstra uma iniciativa pensada, uma tomada de decisão: «Sabendo que não tinha jeito, eu peguei e fiz o parto.»
Para alguns gramáticos, a construção «pegar e [verbo]» é uma perífrase, isto é, uma frase que tem mais palavras do que deveria. Nos textos escritos e em discursos formais, portanto, é recomendável evitá-la. Se você pode enxugar o texto, tire o «pegar e». É mais negócio escrever «ele foi nadar» em vez de «ele pegou e foi nadar». É economia de palavras, gente!
No discurso oral do dia a dia, o «pegar e [verbo]» é supernormal. É um recurso que assegura a fluência das trocas verbais e ajuda a estruturar o discurso do falante. Não é pecado algum pegar e falar assim, desde que não seja em excesso. Na fala cotidiana, você pode pegar e falar «pegou e falou» tranquilamente; só não pode pegar e ficar corrigindo quem assim fala. Pega súper mal.
Apontamento do biólogo e divulgador de temas gramaticais braileiro Rafael Rigolon , publicado no mural do FacebookLíngua e Tradiçãoem 14 de julho de 2024.