DÚVIDAS

Uso do auxiliar ter e do pretérito mais-que-perfeito do indicativo

No uso de formas verbais, tenho dúvidas sobre o uso dos verbos ter e haver como auxiliares.

– Em expressões como «Tinha-me preparado para a docência»/ «havia-me preparado para a docência», gostaria de saber se são equivalentes, se se pode usar um verbo ou o outro indistintamente. Neste caso coincidiria com o tempo verbal chamado em espanhol pretérito pluscuamperfecto: «Me había preparado para la docencia».

E também [queria saber] se é equivalente à expressão: «preparara-me para a docência.» Acho que neste caso a forma verbal em português é o pretérito-mais-que-perfeito, e coincidiria com o que dizemos em galego: «Preparárame para a docencia.»

Outros exemplos similares: «Ele disse que havia tido uma espécie de alergia na pele.»/«Ele disse que tinha tido uma espécie de alergia na pele.»/«A moça entrou e disse que tivera um sonho terrível

– Em espanhol: «Él dijo que había tenido una especie de alergia en la piel.»/ «La chica entró y dijo que había tenido un sueño terrible.»

–  Em galego: «El dixo que tivera unha especie de alergia na pel.»/ «A rapaza entrou e dixo que tivera un soño terrible.»

Resposta

Os dois auxiliares – ter e haver – são geralmente equivalentes no pretérito mais-que-perfeito, mas há diferenças de uso.

Em Portugal, só muito raramente – geralmente, em textos muito formais ou literários – se usa hoje o auxiliar haver, pois ter é o auxiliar claramente predominante no mais-que-perfeito1:

(1) Tinha-me preparado para a docência, mas de repente tive outra proposta profissional.

Também possível, mas raro e até um tanto forçado:

(2) Havia-me preparado...

Note-se, porém, que no Brasil este uso de haver parece mais frequente, pelo menos, na escrita. Assinale-se também que, no pretérito perfeito do indicativo, com valor habitual ou iterativo, é sempre ter que se usa:

(3) Ultimamente, tenho preparado muitas aulas. (e não «hei preparado...»)

Quanto à relação entre o pretérito mais-que.perfeito composto – «tinha-me preparado» – e o pretérito mais-que-perfeito simples – «preparara-me» –, diga-se que, ao contrário do galego, na atualidade esta forma simples só ocorre esporadicamente no discurso mais cuidado, tanto em Portugal como no Brasil ou outros países de língua portuguesa: «preparara-me para a docência» é, portanto, um uso correto, mas hoje sobretudo literário e formal (cf. Textos Relacionados).

Sendo assim, em relação às últimas frases apresentadas pelo docente, as formas equivalente em português de Portugal, correntes e corretas, são:

(4) Ele disse que tinha tido uma espécie de alergia na pele.

(5) A rapariga entrou e disse que tinha tido um sonho terrível.2

Como se disse, não é que em (4) e (v) sejam impossíveis o auxiliar haver e o pretérito-mais-que-perfeito simples. O que acontece, não obstante, é que estes usos são menos frequentes e dão ao discurso um toque de elaboração alheio ao auxiliar ter e ao mais-que-perfeito composto, que fazem parte da língua coloquial, do dia a dia.

 

1 Uma consulta da secção histórica do Corpus do Português, de Mark Davies, revela que o verbo haver, como auxiliar temporal, ocorre muito mais em textos brasileiros do que em textos de Portugal.

2 Em Portugal, é muito frequente rapariga. Todavia, no Brasil, é palavra pouco usada, e no Nordeste tem até sentido pejorativo, empregam-se outras, entre elas, moça, que ocorre igualmente em Portugal (sobretudo em modalidades regionais do centro-sul). Cf. "Rapariga – no Brasil e em Portugal".

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