A análise da questão colocada exige antes de mais que se faça a distinção entre duas realidades; a locução pronominal «o que» e a sequência «o que» formada por artigo, usado como “pronome demonstrativo” seguido de que1.
I. Esta última realidade está presente numa frase como (1):
(1) «Adorei o que me aconselhaste.» (Conversa sobre um livro)
Vários dados comprovam que o não faz parte do constituinte relativo:
(i) o é variável em género e número:
(2) «Adorei os que me aconselhaste.» (conversa sobre livros)
(3) «Adorei a que me aconselhaste.» (conversa sobre música)
(4) «Adorei as que me aconselhaste.» (conversa sobre músicas)
(ii) o pode ser substituído por outro determinante como aquele:
(5) «Adorei aquele que me aconselhaste.»
(iii) o introduz um nome omitido que se recupera pelo contexto:
(6) «Adorei o livro que me aconselhaste.»
Neste caso, estamos assim perante uma oração relativa com antecedente implícito.
II. Estamos perante a locução relativa «o que» quando
(ii) o artigo o não pode ser substituído por um determinante:
(7) «Ofereceu-me um livro, o que me deixou feliz.»
(8) «*Ofereceu-me livro, aquilo que me deixou feliz.»
(ii) o não flexiona em género e número:
(9) «*Ofereceu-me prendas, as que me deixaram muito feliz.»2
(iii) não é possível inserir um nome entre o e que (porque se trata de uma locução):
(9) «*Ofereceu-me um livro, o livro que me deixou muito feliz.»2
A diferença assinalada entre I e II tem implicações também no uso das preposições com os relativos. Como se sabe, no caso de o verbo da oração relativa reger preposição, esta será colocada no início da oração relativa, como em (10):
(10) «A festa de que gostei muito durou até tarde.»
No caso I, a preposição será colocada entre o artigo e o relativo:
(11) «Adorei o de que me falaste.»
No caso II, a preposição será colocada antes da locução relativa:
(12) «Fez uma apresentação tocante do livro, com o que me surpreendeu.
As frases apresentadas pelo consulente têm ainda a particularidade de constituírem construções clivadas ou de foco (cf. aqui). Uma frase na ordem normal (13) permite que um dos seus elementos seja colocado em destaque através da construção de clivagem (14) ou (15):
(13) «Muitos duvidam das suas possibilidades.»
(14) «O de que muitos começam a duvidar é das suas possibilidades.»
(15) «Do que muitos começam a duvidas é das suas possibilidades.»
Nos casos apresentados pelo consulente, estamos perante uma situação de interpretação dúbia, ou seja, tanto tratar-se de uma oração relativa com antecedente implícito como de uma construção com locução relativa. Esta dificuldade de interpretação deve-se ao facto de os traços semânticos da sequência «o que» serem semanticamente vagos. Daí ser difícil identificar o nome que se poderia colocar entre o e que. Porém, note-se que é possível substituir o por aquilo3.
Perante esta ambiguidade de interpretação, diremos que ambas as possibilidades apresentadas pelo consulente são possíveis: a colocação da preposição entre o artigo e o pronome ou a colocação da preposição antes da locução relativa.
Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.
*assinala agramaticalidade.
1. Para maior aprofundamento, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2085-2089.
2. Note-se que esta frase seria possível como modificador do nome (adjunto do nome). Neste caso estaríamos, de novo, perante um caso de artigo seguido de que.
3. Esta mesma situação é discutida em Raposo et al., Ibidem, pp. 2088 – 2089, caixa [10].