DÚVIDAS

Curriculum, currículo e declinações latinas

Penso que já li todos os artigos do Ciberdúvidas sobre o plural de “curriculum”, mas em nenhum deles encontrei resposta para o seguinte: quem, em vez de dizer “os currículos”, prefere a forma latina “curricula”, não incorre em erro grotesco quando escreve expressões do género «os programas dos curricula» (em vez de «os programas curriculorum») ou «nos curricula deste curso» (em vez de «nos curriculis deste curso»)? Não seria mais coerente empregar sempre a forma portuguesa?

Resposta

O plural de currículo (forma aportuguesada), como todos sabemos, é currículos. Quanto a curriculum, por se tratar de um termo latino, não podemos dizer, em bom rigor, que tenha apenas um plural, como o nosso consulente salienta, e com razão. Na verdade, por questão de declinação, este termo tem três formas distintas no plural: curricula (nominativo, vocativo e acusativo), curriculorum (genitivo) e curriculis (dativo e ablativo).

Perante tal abundância de formas, qual ou quais deveremos utilizar? Sugere o consulente que, por questão de coerência, quem prefere o singular latino curriculum (em detrimento do termo aportuguesado currículo) deveria recorrer não a uma única forma de plural, mas a várias, adaptando-as à situação concreta, consoante a declinação latina. Julgo não ser curial defender-se tal procedimento, pelos seguintes motivos:

1) Por uma questão de coerência, quem usasse o singular curriculum deveria igualmente “decliná-lo”, ou seja, deveria usar três formas (curriculum, curriculi, curriculo) em vez de uma só, consoante o contexto, o que complicaria ainda mais a questão...

2) A utilização de várias formas, em vez de uma só, implicaria o conhecimento, por parte do falante, das declinações latinas. Seria excessiva exigência, numa altura em que o ensino do latim é extremamente restrito no nosso país...

3) Mesmo que pretendêssemos aplicar este preciosismo à letra, teríamos de decidir, à partida, com que proposições é que utilizaríamos, por exemplo, a forma ablativa e a forma acusativa. Em latim, há preposições que regem acusativo (por exemplo, ante, contra, post) e preposições que regem ablativo (por exemplo, cum, pro, sine). Ora, em português, ao contrário do que sucede em latim, é mais frequente utilizarmos locuções prepositivas em vez de preposições simples. Estas locuções, nalguns casos, são constituídas por preposições que regem diferentes casos em latim. Por exemplo, a locução «cerca de» é formada pela preposição cerca, cujo correspondente latino (circa) rege acusativo, e pela preposição de, que rege ablativo em latim. Caso pretendêssemos aplicar a sugestão do nosso consulente, seria necessário escolhermos entre um e outro caso, ou então arbitrarmos que seria preferível a forma acusativa pela simples razão de a referida locução corresponder à preposição latina circiter, que rege apenas acusativo. Ou seja, complicações atrás de complicações...

De modo geral, os termos latinos que se empregam na nossa língua apresentam-se na sua forma nominativa, por ser a forma “mais visível” e mais conhecida. Os dicionários de latim, por exemplo, apresentam geralmente apenas a forma nominativa, acompanhada do genitivo, para mostrar a que declinação pertence o substantivo correspondente, mas omitem as restantes formas. Além de curriculum, há outros termos latinos não assimilados que são utilizados em português, sobretudo em linguagem especializada. Em genética, por exemplo, usa-se amiúde o termo locus no singular, com o plural loci. Empregam-se sempre as formas nominativas, independentemente das preposições que as antecedem. É esta a prática corrente, não só em português como nas restantes línguas.

Quanto à questão de, no caso de currículo, ser «mais coerente empregar sempre a forma portuguesa», responderia que tal uso é preferível, não por uma questão de coerência, mas por uma questão de facilidade. Aliás, estou em crer que o termo português é bastante mais frequente que o latino, tal como acontece, por exemplo, com espécime, défice e regime em relação a espécimen, deficit e regímen, respetivamente. No entanto, aqui e ali ainda se vai ouvindo curriculum e curricula...

 

N. E. (06/10/2020) – Sobre ao aportuguesamento de palavras latinas, leia-se, da autoria de João Batista Toledo Prado, "Por Uma Normatização Ortográfica de Palavras Latinas Incorporadas ao Português", Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, n.º 35, 2008, pp. 37-48. Quanto à posição defendida neste artigo, registe-se o comentário do consultor da presente resposta, Gonçalo Neves:

«[...] Concordo inteiramente com a opinião e com os critérios explanados pelo autor (João Batista Toledo Prado). Parece-me muito mais curial tratar o vocábulo campus como já há muito tratamos vocábulos análogos de origem latina que recebemos por via erudita (por exemplo, ónusânusmúnus), ou seja, aportuguesá-lo integralmente, grafando-o de acordo com as normas ortográficas da nossa língua (câmpus) e mantendo a mesma forma no plural («o câmpus», «os câmpus»). O mesmo se diga em relação a corpus (córpus), também referido no artigo, e a outros menos conhecidos do grande público, como locus (lócus), utilizado no campo da genética. Só desta forma poderemos evitar hesitações e dúvidas na formação do plural, como procurei explicar na minha resposta sobre o vocábulo curriculum, escrita em 2016.»

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