A ortografia castelhana procura reflectir um sistema de sons em que, ao contrário do português, não há contraste entre as chamadas sibilantes surdas e sibilantes sonoras. Em vez disso, no castelhano normativo [excluo os dialectos meridionais como o andaluz] existe um contraste entre uma fricativa ápico-alveolar surda, representada pelo grafema s (em “casa”), e uma fricativa dental (representada pelos grafemas z, antes de a, o, u, e c, antes de e e i; exs.: “zapato”, «sapato», “cerezo”, «cerejeira»). O ensurdecimento das sibilantes em castelhano é o resultado de uma evolução fonética que se generalizou no séc. XVII, levando a que o z de “rezar”, «rezar», acabasse por ser pronunciado com o mesmo som surdo que era representado por ç em “caça”, «caça» (ver Rafael Lapesa, Historia de la Lengua Española, Madrid, Editorial Gredos, 1981, pág. 371).
Em Portugal, pelo contrário, não se registou tal processo; em vez dele, manteve-se o contraste entre sibilantes sonoras, mas neutralizou-se o contraste entre fricativas ápico-alveolares (entre elas o “s” beirão) e as fricativas predorsodentais (digamos, o s das zonas do litoral e do Sul de Portugal). Isto significa que em português houve, até ao século XVI, diferença de pronúncia entre coser e cozer, mas após a mudança fonética, na maior parte do território português, o grafema z passou a ter a mesma pronúncia que s entre vogais (sonoro, como em casa).
Não havia, pois, razões fonéticas para que em português a letra z substituísse ç, visto que tradicionalmente se associava a esta um som surdo e àquela um som sonoro. Penso que em castelhano, como houve o desaparecimento do contraste surda/sonora (ensurdecimento), se actuou no sentido da economia gráfica, visto que hoje a regra do uso das letras z e c obedece a um princípio de complementaridade na representação do mesmo som – a fricativa interdental surda (símbolo fonético [θ]): assim, a primeira letra surge antes de a (“zarza”), o (“zorra”) e u (“azul”); a segunda antes de e (“hacer”) e i (“acción”).
Concluímos, pois, que, se, na Idade Média, português e castelhano tinham um sistema de sibilantes semelhante, o qual era representado graficamente de modo semelhante, a partir do Renascimento, houve mudanças fonéticas que se repercutiram nas convenções ortográficas das duas línguas.
Quanto à última pergunta do consulente, o s beirão é em parte “aparentado” com o z espanhol: este representa a consoantes africadas [ts] e [dz] (que em português antecederam o [s] de paço e o [z] de cozer); aquele remonta à consoante s de posso, mas acabou por se tornar também a pronúncia do ç de poço.
Resta explicar que, enquanto, no litoral e no Sul de Portugal, a neutralização das sibilantes foi feita a favor dos sons [s] (surdo) e [z] (sonoro) – isto é, a favor das fricativas predorsodentais surda e sonora –, nas Beiras, em parte do Minho e em parte do vale do Douro, ela foi feita com os sons ápico-alveolares surdo e sonoro, representados respectivamente pelos símbolos fonéticos [s] e [ z]. A escrita manteve a antiga distinção entre sibilantes, a qual ainda subsiste em zonas do Nordeste de Portugal. É por isso que escrevemos (etimologicamente) Viseu, visto que a sua forma medieval exibia um s “simples”, intervocálico, ao qual correspondia a consoante ápico-alveolar sonora [z].