Como veio a expressão XPTO a significar o mesmo que «algo de qualidade excelente»? Gonçalo Neves investigou os primeiros registos deste uso e revela-nos várias surpresas, em resposta ao pedido de uma consulente de Lisboa, a tradutora Diana Marques*.
1. Os primeiros registos lexicográficos de XPTO
O Dicionário Eletrônico Houaiss dá como fonte do primeiro registo de x.p.t.o. a primeira edição (1881) do Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza do professor, lexicógrafo e político português Caldas Aulete (1826 – 1878), mas a verdade é que existe um registo anterior, no quinto volume (1874) do Grande diccionario portuguez, ou Thesouro da lingua portugueza, do frade agostinho, teólogo, romanista e lexicógrafo português Domingos Vieira (1775 – 1857), no qual se pode ler, na ortografia da época:
«Termo de giria – X P T O; diz-se para designar a excellencia d’uma cousa – Cousas de X P T O. – Isto é de X P T O. Diz-se também: X P T O London. Qual a origem d’esta phrase assaz espalhada e hoje pela primeira vez recolhida? X P T O era uma abreviatura de Christo nos antigos manuscriptos, mas a forma X P T O London parece indicar antes que a phrase se originou d’uma marca commercial ou d’expedição.» (p. 1017).
2. Os antigos manuscritos latinos
O que o eminente lexicógrafo não explica – nem ele nem muitos outros que, na sua esteira, propalam, com maiores ou menores variações, a origem crística do termo – é a misteriosa forma como terá chegado à gíria uma abreviatura de «antigos manuscritos», certamente escritos em latim, repletos de ligaduras e outras particularidades ortográficas que tornam a sua leitura extremamente difícil, apenas ao alcance de especialistas!
Além disso, fica por provar se a tal abreviatura XPTO era mesmo encontradiça em «antigos manuscritos». A verdade é que não a descortino no Lexicon Abbreviaturarum – Dizionario di abbreviature latine ed italiane, do arquivista, paleógrafo e historiador italiano Adriano Cappelli (1859 – 1942), cuja primeira edição veio a lume em 18991. Consultei a sexta edição (Ulrico Hoepli, Milão, 1979), e as abreviaturas mais parecidas que encontrei foram as seguintes (nas páginas 402 e 505):
XPI – Christi («de Cristo»): século XIV
XRO – Christo («a/para Cristo»)
Xto, XTO – Christo («a/para Cristo»): século XIV
XTI – Christi («de Cristo»)
Também não a encontro no Lexicon diplomaticum de Johann Ludolf Walther (1752), que recolhe abreviaturas que constam em documentos diplomáticos e códices lavrados entre os séculos VIII e XVI. Nesta obra, as abreviaturas mais parecidas que encontrei foram as seguintes (na Tabela CCXVIII):
xpo – Christo («a/para Cristo»): século VIII, 1149, 1437, 1611
xto – Christo («a/para Cristo»): século XIV
Parece-me estranho que estas duas obras, as maiores que conheço do género e que recolhem cerca de 12.300 e 13.300 abreviaturas, respetivamente, não façam referência a uma abreviatura que, para gerar um termo de gíria, deveria ser frequente e conhecida.
No entanto, é certo que, já por estas datas, se usava também a forma ablativa abreviada Xpto., como prova um documento latino lavrado em Pádua a 28 de dezembro de 1411, no qual se lê Reverendus in Xpto. («Reverendo em Cristo»), conforme se pode consultar na obra Dissertazione nona sopra l’istoria ecclesiastica padovana, da autoria de Francesco Scipione Dondi Orologio (Pádua, 1817).
3. A abreviatura XPTO em documentos espanhóis
Não encontro qualquer referência a XPTO numa obra bastante mais recente, A Paleographic Guide to Spanish Abbreviations 1500-1700: Una Guía Paleográfica de Abreviaturas Españolas 1500-1700, de A. Roberta Carlin (Universal-Publishers, 2003, 204 p.), na qual as mais aproximadas são as seguintes (p. 26):
xpiano (Cristiano)
xpoval (Cristóbal)
xobal (Cristóbal)
Neste sítio, do Departamento de História e do Centro de História Familiar e Genealogia da BYU (Brigham Young University), dedicado às abreviaturas encontradas em antigos documentos espanhóis, lê-se um pequeno capítulo sobre os chamados conventionalisms («convencionalismos»), que diz o seguinte:
«Encontram-se normalmente em documentos antigos e são símbolos que representam palavras inteiras ou sílabas. O mais habitual é a utilização de X, Xpo ou Xpto para representar Cristo («Cristo»). Este convencionalismo em concreto é utilizado na abreviatura do nome Cristóbal, que aparece como Xptobal.»
A imagem à direita mostra a referida abreviatura, extraída de um documento antigo, o qual, infelizmente, não se encontra identificado nem datado no sítio em questão.
Ou seja, de acordo com esta fonte, que me parece credível, Xpto seria habitual, pelo menos em antigos documentos espanhóis, não propriamente como abreviatura de Cristo, mas como uma forma de representar as duas primeiras sílabas da palavra Cristóbal.
Neste sítio, do mesmo Departamento da BYU, dedicado a este assunto, encontra-se, porém, a abreviatura Xpti a representar Christi («de Cristo») na expressão Corpus Xpti, ou seja, Corpus Christi («Corpo de Cristo»).
A imagem à direita mostra a referida abreviatura, extraída de um documento antigo, o qual, mais uma vez, não se encontra identificado nem datado no sítio em questão.
A existência de documentos em que aparece a abreviatura Xpti a representar a forma genitiva latina Christi («de Cristo») numa expressão “cristalizada” (Corpus Cristi) inserida em documentos espanhóis poderá ser uma pista para explicar o aparecimento de Xpto (ou mesmo XPTO, em maiúsculas), já não para representar a forma ablativa latina Christo («a/para Cristo»), mas em substituição do próprio vocábulo castelhano Cristo, em todas as suas funções sintáticas.
De facto, tudo indica que a abreviatura XPTO (ou as suas variantes Xpto ou xpto, com ou sem pontos a separar as letras) terá mesmo começado a generalizar-se a partir do século XVI, em documentos escritos em espanhol e, muito presumivelmente, em português.
Por exemplo, na obra Sculpture Collections in Early Modern Spain, de Kelley Helmstutler Di Dio e Rosario Coppel (Ashgate Publishing 2013, 463 p.), figuram diversos inventários de arte dos séculos XVI e XVII, escritos em espanhol, nos quais a abreviatura xpto (ou Xpto) aparece por diversas vezes a designar representações plásticas de Cristo. Eis alguns exemplos: un Xpto de plata con su pie de lo mismo (p. 154); un relicario ochavado con un santo xpto en medio (p. 290); Un modelo de un xpto en el sepulcro (p. 352).
Já na Ortografía de la lengua castellana da Real Academia Española (9ª edição, Madrid, 1826) se fala de «Las comunes abreviaturas JHS. y Xpto. con que significamos los sacratísimos nombres de Jesus y Cristo [...]» (p. 138). Por essa altura, pelos vistos, tais abreviaturas já eram usuais.
Também na obra Ortología y diálogos de caligrafía, aritmética, gramática y ortografía castellana, de Torquato Torío de la Riva (Madrid, 1804, 362 p.) não falta a abreviatura em questão: «Xpto ...... Cristo» (p. 84).
A mesma abreviatura aparece nesta medalha dedicada ao Santísimo Cristo del Humilladero (século XVIII).
4. A imaginação a funcionar...
4.1. A “teoria dos caixotes”
O facto de, à primeira vista, ser difícil de perceber ou conceber de que forma uma abreviatura “sacra” poderá ter dado origem a um termo de gíria levou ao aparecimento de várias “teorias” ou tentativas de explicação, mais ou menos imaginosas. O próprio Dicionário Eletrônico Houaiss refere uma delas, quando diz o seguinte, na sua explicação etimológica:
«[...] conforme registro da GEPB [ou seja, da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 30 vol. Lisboa / Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, 1935-1958], há quem considere X.P.T.O. a inscrição nos caixotes de uma marca inglesa de cobertores ao preço de dez libras “X P(ondera) T(ectoria) O(ptima), óptimos cobertores a dez libras”».
Bem, é caso para perguntar o que teria um fabricante inglês de cobertores em mente quando se lembrou de mandar fazer uma inscrição latina nos caixotes da mercadoria, ainda por cima só com as iniciais, e com sintaxe nada clássica (que inclui acusativo de preço)... Com que objetivo? Haveria paleógrafos na alfândega?
4.2. Ainda a “teoria dos caixotes”
Encontrei aqui uma variante que não resisto a transcrever:
«XPTO era uma marca que, em tempos, se fazia nos caixotes nas alfândegas. X era apenas uma marca que assinalava que o produto já tinha sido revisto. PTO significava Packed To Overseas [«embalado para transporte marítimo»]. Hoje em dia não temos muita noção disso, mas quando os transportes eram muito caros e as taxas aduaneiras proibitivas, quase que só fazia sentido exportar artigo de muito boa qualidade, normalmente bem caro. Eram, portanto, artigos XPTO.»
À partida, parece uma explicação bastante mais plausível do que a anterior. Um produto XPTO seria, portanto, um produto importado, ou seja, mais caro e de “maior prestígio” do que o produto nacional. O problema é que, até ao momento, que eu saiba, ninguém conseguiu provar que a sigla PTO tivesse sido realmente utilizada com o significado pretendido. Por exemplo, neste, neste e nestoutro dicionário de abreviaturas, siglas e acrónimos da língua inglesa, encontram-se, respetivamente 38, 61 e 157 significados diferentes da sigla PTO – alguns deles do ramo dos transportes –, mas o suposto Packed to Overseas prima pela sua ausência! O mais “próximo” que encontrei, no segundo dicionário referido, foi PKSEA (PacKed for overSEAs)...
4.3. Os caixotes, mais uma vez
No Recanto das Letras, o escritor brasileiro Alelos Esmeraldinus, num pequeno artigo a este respeito, brinda-nos com mais uma variante desta “teoria”. Diz-nos ele que o termo foi criado «acidentalmente» por um «estivador londrino», significando o X «inspecionado» e o resto da sigla «PROMPT TO OUT = Pronto para sair ou exportar». O problema, mais uma vez, reside no facto de, aparentemente, não haver qualquer indício de a sigla PTO ter sido realmente empregue com esse significado: os três dicionários de siglas anteriormente referidos ignoram-na completamente. E por que razão haveria um estivador de inventar uma sigla que mais ninguém entendia?
Quanto à suposta origem crística da sigla, o mesmo autor, quem sabe se com razão, considera-a «muito improvável, embora Cristo seja indubitavelmente a excelência das excelências».
5. A variante “XPTO London”
5.1. Em pleno uso na segunda metade do século XIX
Conforme referido no ponto 1, já o velhinho dicionário de Domingos Vieira chamava a atenção para a existência da variante “XPTO London”. Devido à tendência natural do ser humano para abreviar e simplificar, creio que será curial considerar XPTO como uma forma reduzida de “XPTO London”, a qual seria, então, a expressão original, a que poderá, de alguma forma, fornecer a chave do mistério.
Em 1877, ou seja, apenas três anos após o referido registo lexicográfico de Domingos Vieira, encontramos a expressão “XPTO London” na peça Nova viagem à Lua, do dramaturgo, poeta, contista e jornalista brasileiro Artur Azevedo (1855 – 1908). No Terceiro Ato, Cena IV, lê-se este saboroso diálogo:
«Machadinho – Este é o célebre professor aeronauta elétrico... (Cortesias do Doutor Cábula.)
Arruda – Ahn... Conheço muito! A roupa dele não foi pro museu.
Machadinho –... o muito sábio Doutor Humboldt Agassis Levington Lesseps X.P.T.O. London...
Arruda – Vacê só me apresenta gente cum nome de légua e meia!»
Repare-se no tom irónico da expressão! Este exemplo denota, aliás, que, por estas alturas, ela servia igualmente para qualificar pessoas de carne e osso, e não apenas artigos comerciais.
(Esta personificação irónica de “XPTO London”, aliás, estendeu-se também ao termo abreviado XPTO, como se pode comprovar neste artigo humorístico, publicado na revista brasileira Fon-Fon! a 11 de maio de 1907 (nº 5, p. 11), em que X.P.T.O. é o nome de um «banqueiro circumspecto» que, «num domingo ocioso», espairecendo «no Campo de Sant’Anna», e estando «elegantemente fatigado», acaba por descansar «as nobres poisadeiras n’um banco plebeu»...)
Em 1890, ou seja, pouco mais de uma década após publicação da anterior peça de Artur Azevedo, voltamos a encontrar a expressão completa em Viagem ao Parnaso, igualmente da autoria do dramaturgo brasileiro (Segundo Ato, Quadro 5, Cena VI):
«– Música assim tão saltitante
É rara em terras de Albion!
Isto seduz qualquer dançante!
Isto é xpto London?»
Mas não era apenas no Brasil que se lançava mão desta expressão. Por exemplo, no número 9:796 do Diario Illustrado, publicado a 18 de janeiro de 1900 em Lisboa, pode ler-se o seguinte, num artigo intitulado “O dia de hontem”, na ortografia da época, algo avessa a acentos gráficos:
«Dia de sol e vento.
População inclinada para os lados de Algés – onde havia uma tourada de XPTO London, que o nosso amigo Escamillo Junior [...] se encarregará de descrever ao respeitavel publico». (p. 2)
(Note-se o recurso à preposição de entre o substantivo tourada e o qualificativo “XPTO London”, que não se encontra noutras citações.)
5.2. Atualmente caída em desuso
A expressão completa “XPTO London” caiu entretanto em desuso, o que justifica o seguinte comentário de Clever Mendes de Oliveira, publicado no dia 10 de novembro de 2011 no blogue de Alon Feuerwerker (n. 1955), jornalista brasileiro de origem romena: «Se eu fosse um pouco mais antigo, da época do “xpto london”, chamaria seu comentário de supimpa.»
Já o jornalista e escritor brasileiro Paulo Francis (1930 – 1997) num artigo publicado na Folha de S. Paulo a 21 de agosto de 1986 (p. 56), intitulado “Mulheres, fortuna e sucesso” escrevera o seguinte: «estou reabilitando essas gírias, como [...] “xpto london” etc.». Se estava a reabilitá-las, é porque andavam esquecidas...
Apesar disso, também na Folha de S. Paulo, a 13 de julho de 1989 (p. 28), Ivan Lessa (1935 – 2012), escritor e jornalista do serviço brasileiro da BBC, ao escrever uma crónica a partir de Londres, aventurou-se a intitulá-la precisamente “XPTO London”, sem fazer, no corpo da mesma, qualquer referência ao significado ou à origem da expressão....
Pedro Nava (1903 –1984) médico e escritor brasileiro, no seu livro de memórias Baú de Ossos (1972), também não hesitou em empregá-la para descrever a indumentária do pai e de um amigo em finais do século XIX:
«Vestiam-se como parisienses, geralmente sobrecasaca ou fraque e cartola; mais raramente croasê e chapéu-coco; excepcionalmente, e isto só no desalinho dum ‘comício rural’, num piquenique, dum passeio ao Corcovado ou ao Jardim Botânico, terno de cheviote claro, colete de fantasia, plastron branco e palheta ‘XPTO London’ [...]». (p. 218 da edição de 2002)
E é precisamente graças à pátina que vai revestindo este e outros termos que Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), escritor, contista e poeta brasileiro, obtém um interessante efeito expressivo na sua crónica Antigamente I, publicada na obra coletiva Quadrante (1962), hoje raríssima, crónica essa que tem sido reproduzida à saciedade (já o foi também no Ciberdúvidas), e na qual se pode ter o seguinte trecho:
«Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.» (p. 124)2
5.3. A misteriosa marca comercial
5.3.1. Seriam chapéus?
Conforme referido no ponto 1, já em 1874 o lexicógrafo Domingos Vieira tivera a intuição de aventar a hipótese de “XPTO London” provir «d’uma marca commercial ou d’expedição». É precisamente essa informação que, de forma subtil, nos presta o Tagarela, antigo semanário humorístico publicado no Rio de Janeiro e há muito extinto, num artigo intitulado “De ramo em ramo”, vindo a lume no dia 30 de julho de 1903 (nº 75, p. 11), no qual se pode ler o seguinte, na ortografia da época:
«Os empréstimos já foram contrahidos: o de Londres, pesa em nosso lombo quinze contos de réis diarios, de juros, que havemos de ter a honorabilidade de pagar ao Snr. Rothschild X.P.T.O. London, marca registrada, igual áquella que noutros tempos se via no fundo dos chapéus que da mesma procedência nos mandavam por preços commodos, mercadoria esta que hoje dispensamos por falta de cabeça ou de miolo [...]».
De acordo com esta tirada, “X.P.T.O. London” seria então uma marca registada de chapéus ingleses, cuja qualidade, presumivelmente irrepreensível, teria motivado a derivação de sentido que já conhecemos. Tal como referido no ponto 5.1, note-se a personificação da expressão, mais uma vez em tom irónico.
5.3.2. Novamente os cobertores!
Bastantes anos mais tarde, somos brindados com uma interessante exposição em A Gazeta, um jornal que se publicava em Florianópolis e se apodava «A voz do povo», ainda por cima «Sem quaesquer ligações politicas». Em cinco parágrafos integrados na rubrica “Quinquilharias”, na página 2 do número 12, publicado a 29 de agosto de 1934, lemos o seguinte, mais uma vez na ortografia da época, diferente, aliás, da que já então se usava em Portugal:
«Houve tempo em que entre a gente de commercio e mesmo de sociedade era comum usar-se a expressão X.P.T.O. London para indicar uma cousa e esplendida ou pessôa bonita.
«Até o nosso Linhares lançou no mercado os cigarros X.P.T.O., de uma finura de palito e fabricado com fumo caporal fortissimo, de amarellar os dedos do tabagista.
«Pois X.P.T.O. London era u’a marca de fabrica (trade mark) de uma firma de Londres que remettia para o Brasil inegualaveis cobertores de lã, de seu fabrico.
«As quatro letras, que toda a gente reduziu a caracteres nossos, eram letras grêgas: X equivalente a Ch, com o som de K; P que na lingua [de] Demosthenes, corresponde ao R (ros) [aliás, rô] e nossos T e O.
«E nas quatro letras formam a abreviatura da palavra Christo, que o fabricante londrino empregava para demonstrar a excellencia do producto.»
E assim terminava a parte mais erudita da rubrica “Quinquilharias”, que logo a seguir se dedicava a um assunto bem mais comezinho: «É perigoso tirar cêra do ouvido com pequenos objectos ponteagudos, como phosphoros, palitos, grampos para cabello, etc.». Valha a advertência!
O que importa reter é que, de acordo com A Gazeta, a tal marca registada seria de cobertores e não de chapéus, e a sigla X.P.T.O., que o Tagarela não explicava, teria a origem crística tantas vezes aventada.
5.3.3. Ou seriam afinal fatos?
Numa entrevista realizada a 2 de novembro de 2000, Osvaldo Gabrieli (n. 1958), encenador, cenógrafo e figurinista argentino radicado no Brasil, deu a seguinte explicação sobre a origem do nome do XPTO, grupo teatral brasileiro fundado em 1984:
«Esse nome vem de uma peça de Oduvaldo Vianna Filho. Lá tem um personagem que fala XPTO o tempo inteiro. Descobrimos que era uma gíria dos anos 20, 30, que vinha dos produtos ingleses que chegavam ao Brasil com uma etiqueta: XPTO LONDON. Era uma gíria que significava “coisa de qualidade”. Gostamos do nome porque era ambíguo. Parecia experimento, e também significava Cristo em grego. Acabou ficando esse nome porque tem uma ótima sonoridade, é abstrato e não tem que ser nada específico.»
Nem chapéus, nem cobertores: apenas «produtos ingleses». No entanto, na sua tese de mestrado Da performance ao vídeo, apresentada no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas em 1994, a artista e investigadora brasileira Rosangela da Silva Leote dá mais pormenores sobre a origem do nome deste grupo teatral:
«Quanto ao significado do nome, segundo uma conversa telefônica com Roberto Firmino, soube que ele mesmo batizou o grupo como XPTO. A inspiração teria aparecido quando ele assistiu uma peça de Oduvaldo Vianna Filho “Rasga Coração”, em que o personagem Lorde Bundinha repetia muito a expressão ”XPTO London”, que seria uma gíria muito corrente nos anos 20 significando primeiramente coisa de qualidade, comparável às expressões “bacana” ou “legal”, surgidas nos anos 60. XPTO LONDON era a inscrição nas etiquetas de ternos ingleses que chegavam no Brasil. Nessa época a importação européia era signo de modernidade.» (p. 223)
Portanto, de chapéus, passámos para cobertores e já vamos em fatos! Mas não nos ficamos por aqui...
5.3.4. In vino veritas?
O artigo mais desenvolvido que conheço sobre este tema é da autoria do médico e poeta português Américo Cortez Pinto (1896 – 1979) e foi publicado na Colóquio – Revista de Artes e Letras em dezembro de 1968 (nº 51, p. 66-69), sob o título “X.P.TO. London”. É um texto belíssimo, espirituoso, de fino recorte literário e eivado de erudição, cuja leitura recomendo vivamente (está disponível na íntegra aqui). No entanto, o insigne escritor expõe apenas conjeturas e suposições, sem qualquer suporte documental.
Parte de uma hipótese apresentada pelo filólogo Ivo Xavier Fernandes (1884 – ?), natural do Funchal, na página 238 da sua obra Estudos de Lingüística (Editora Educação Nacional, Porto, 1940). Segundo Xavier Fernandes, tudo teria começado numa variedade de vinhos generosos designados por Lacrima Christi («A lágrima de Cristo»), produzidos em Itália, nas encostas do Vesúvio. Ora os enólogos italianos teriam acrescentado ao nome latino «a marca distintiva XPTO». Por que motivo? «Não no-lo explica o douto filólogo», lamenta Cortez Pinto (e eu aditaria que tão-pouco faz muito sentido alguém acrescentar uma abreviatura que quer dizer «Cristo» a uma designação de um vinho que já continha esse nome não abreviado). O público, ignorando o verdadeiro significado da sigla, tê-la-ia tomado como quatro letras distintas. Dessa forma, devido à fama do tal vinho, ter-se-ia generalizado a sigla, a qual teria passado a designar qualquer produto de elevada qualidade.
Entusiasmado com a hipótese vínica, Cortez Pinto embrenha-se em profundas lucubrações de índole histórico-religiosa e dá consigo a conjeturar que as letras gregas XPTO «da primitiva língua eclesiástica» teriam sido gravadas nos recipientes que continham os vinhos «mais distintos», destinados ao ritual católico, «para serem consagrados a Cristo, isto é, a XPTO», marcação esta que serviria «para os distinguir dos outros nos armazéns dos conventos e para marcar as ânforas destinadas às sacristias das igrejas».
Mas não se fica por aqui, aventurando-se a considerar que tal hábito se teria espalhado «entre as cristandades de Itália», que teriam passado a usar a marca XPTO originalmente destinada aos vinhos usados na liturgia. Mais tarde, a mesma marca, que «era uma garantia de pureza e superioridade de vinhos especiais», teria passado a usar-se «para além das reservas eclesiásticas, para gabar um vinho cuja excelência os vendedores pretendiam impor com esta designação consagrada: – um vinho de X.P.T.O., isto é, um vinho digno de missas!».
Bem, o mínimo que se pode dizer é que se trata de uma hipótese fascinante e muito bem engendrada! No entanto, não deixa de ser apenas isso mesmo, uma mera hipótese, pelo menos enquanto não forem pesquisados e divulgados os documentos eclesiásticos que provem a existência de tal prática....
Quanto à componente toponímica da expressão, Cortez Pinho, com maior grau de plausibilidade, defende que os «caixotes de vinho do Douro» destinados a exportação para essa praça seriam «naturalmente marcados com o nome de Londres = “LONDON”», tendo em conta que «os comerciantes que dominavam aquela exportação de vinho do Porto eram ingleses, bem como os grandes armazenistas que mais tarde se tornaram grandes produtores». Finalmente, remata o escritor, «a expressão laudatória generalizou-se, a partir do vinho, para tudo quanto se deseja elevar ao mais alto grau de superioridade».
Ao invés das anteriores hipóteses, que admitiam uma importação de chapéus, cobertores ou fatos de Londres para o Brasil, esta considera o movimento inverso, ou seja, uma exportação, neste caso de vinhos generosos, do Porto para Londres. Ora tal prática de marcar os caixotes de vinho com a marca “XPTO London”, caso tenha existido, terá certamente deixado algum registo na literatura acerca da história do vinho do Porto, a qual, no dizer do economista, advogado, e historiador português Armando de Castro (1918 – 1999), é «extremamente abundante» (Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Volume II, Publicações Alfa, 1985, p. 341). Por que motivo nunca foi divulgado?...
6. Conclusões
Do que ficou exposto resultam alguns factos e muitas hipóteses e conjeturas. Os factos são apenas os seguintes:
· Em 1874 já estava em uso, em Portugal e/ou no Brasil, o termo XPTO, tal como a sua variante “XPTO London”, com o mesmo significado que tem atualmente.
· Em 1877 já estava em uso no Brasil a variante “X.P.T.O. London”.
· Em 1900 já estava em uso em Portugal a variante “XPTO London”.
· Em 1907 já estava em uso no Brasil o termo X.P.T.O.
· A variante “XPTO London” caiu entretanto em desuso.
· Em 1411 já estava em uso em latim a abreviatura Xpto para representar o nome de Cristo.
· Nos séculos XVI e XVII já estava em uso em espanhol a abreviatura Xpto para representar o nome de Cristo.
As hipóteses mais plausíveis seriam as seguintes:
· O termo XPTO seria uma forma abreviada de “XPTO London”.
· “XPTO London” seria uma marca comercial de um produto que Portugal e/ou o Brasil importavam de Londres ou de um produto que Portugal exportava para Londres (neste último caso, o mais provável é que se tratasse de vinho do Porto).
· O tal produto seria de qualidade superior, pelo que o nome da marca teria acabado por se generalizar, passando a designar qualquer produto e, por extensão de sentido, qualquer pessoa cujos atributos se desejasse realçar.
Para algumas destas hipóteses passarem a factos, será necessário perscrutar pacientemente as fontes anteriores a 1874 (jornais, anuários, correspondência comercial, literatura, etc.). Enquanto isso não for feito, muito do que se tem dito sobre o tema em questão continuará a pertencer ao reino da fantasia...
Quanto às primeiras quatro letras da marca (ou seja, XPTO), não será de excluir que possam provir da abreviatura Xpto, utilizada para representar o nome de Cristo pelo menos a partir do século XV, mesmo que não seja claro o motivo pelo qual o fabricante teria escolhido tal designação, mas parece-me algo temerário considerar-se essa identificação como um facto consumado e indiscutível, como tem sido tendência entre os etimologistas até ao presente.
1 Pode consultar-se aqui a 2.ª edição, traduzida em alemão (Leipzig, 1928).
2 Também em: Carlos Drummond de Andrade: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar 197. p. 1184