«Ainda acalento a esperança de vir a perceber a língua portuguesa mas, com cada ano que passa, a esperança queixa-se que está fria.», escreveu Miguel Esteves Cardoso na sua crónica do dia 21/07/2014, no jornal "Público" – retomando essa dúvida em novo texto publicado no mesmo jornal no dia 3/01/2018: «Passaram 4 anos e agora, se eu puser «nem por isso« no Google, logo o primeiro resultado que me aparece é uma entrada do sempre sábio Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Que bom! Que sorte! Vou ver o que eles têm a dizer sobre o "nem por isso" e... é uma transcrição da minha desgraçada crónica de 2014». Ou seja, para ele, surpreendentemente tinha-se transformado num «cibereco solipsista»...
«Nem por isso» é um caso sério de ausência de lógica gramatical, segurança a que gostamos de nos agarrar. Mas é ela que nos agarra, a tal «alforreca das expressões negativas» – ela própria uma expressiva metáfora sobre medusas da língua...
«Nem por isso», na zona das respostas negativas, situa-se mais ou menos a meio do “assim-assim” e do “nem por sombras”. Medusas perigosas, pois, que se movem em areias movediças, atacam a lógica da língua e não se extinguem. Os simples advérbios sim e não, de efeitos tão claros e transparentes, não chegam para os matizes que imprimimos a discursos ambíguos.
Considerando o exemplo do autor, repare-se na gradação da negativa nas respostas:
1.«Gostaste de Manaus? Assim-assim».
2. «Gostaste de Manaus? Nem por isso».
3. «Gostaste de Manaus? Nem por sombras».
Pois é, percebemos muito bem o quanto isto é «enervante», mas tropeçamos nestas alforrecas a toda a hora.
Não ficamos por aqui, construções idiomáticas ilógicas do ponto de vista gramatical é o que não falta na língua, e temos, por exemplo, com a mesma rotunda falta de sensatez: «olha lá, o João anda com a Maria? Assim como quem não quer a coisa, parece que sim…» Isto é horrível! Sobretudo para a Maria, claro.
Ou: «Gostar de cozido à portuguesa, vá que não vá, mas pezinhos de coentrada, nem pensar!»
«Vá que não vá»? E porque não um simples «talvez»?
A verdade é que «nem por isso» se trata de uma construção idiomática que se foi cimentando no idioma português ao longo dos tempos. Estas construções valem pelo significado global que têm, e não pelo valor individual de cada termo. Por este motivo, pode não existir grande lógica gramatical. Provavelmente, trata-se de um castelhanismo, pois a tradução desta expressão noutras línguas foge ao que se pretende dizer em português, apresentando os mais diferentes termos para a ilustrar, como, por exemplo, acontece com o inglês, francês ou italiano. A que se aproxima mais é a tradução espanhola, tanto no sentido como na forma: «no por esto», «ni por esto», «no por ello», o que não é de estranhar, devido às relações históricas entre os dois países e à influência cultural, linguística e política que o país vizinho exerceu sobre Portugal.
Quanto ao significado desta expressão, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa recomenda: “Não é tanto assim.” Mas, atualmente, também é muito usado como um não absoluto, pelo geral dos cidadãos, como refere Miguel Esteves Cardoso nas suas crónicas, onde manifesta a sua maior preocupação com a falta de lógica do termo «nem». Este tem correspondência de significado com «e não», segundo o gramático Domingos Paschoal Cegalla.
A expressão ficou convencionada e é utilizada por diversos autores: «- Domina-te, querido. Eu não. – Nem por isso me tens feito perguntas. – Hei-de fazê-las todas juntas, verás. Lá dentro, a rapariga foi atender o telefone. O telefone não tinha descanso.» Fernando Namora, A Fraude, in Cidade Solitária.
«Logo, nem por isso é muito arrojado formularmos a seguinte hipótese: “Não somos mais, na vida de ontem e na de hoje, do que as sucessivas metamorfoses, diferentemente adaptadas, do mesmo ser astral. O homem é uma crisálida que se lembra”», A Estranha Morte do Professor Antena, Mário de Sá-Carneiro.
«Mas, porque não queremos que ignoreis os nossos recursos e quais as nossas intenções para convosco, entendemos que nem por isso deveis desprezar a nossa promessa, pois consideramos como sujeito ao vosso domínio tudo o que a nossa terra possui.», História do Cerco de Lisboa, de José Saramago.
A equivalência no inglês e no francês
Ouvida também sobre este assunto, Ana Martins lembra que «não, a par de nem, ninguém, nada, entre outros, é operador de negação: «Uma frase com este operador é uma frase de polaridade negativa, o que quer dizer que no polo oposto temos a frase afirmativa, marcada pela ausência de operador negativo.» E acrescenta:
«A resposta a uma pergunta total é necessariamente uma frase de polaridade negativa ou afirmativa. Cumulativamente, em cada polo, a língua dispõe de estratégias de graduação e, no caso de negação, essa graduação pode ir da negação fraca [nem por isso, não muito, não propriamente] à negação forte [nem por sombras, nem por nada, não mesmo]. "Nem por isso" tem equivalência noutras línguas: not really; pas vraiment. Trata-se de uma construção idiomática.»
Em síntese, estes são alguns argumentos que potenciam o uso desta «alforreca das respostas negativas», como ironicamente lhe chama Miguel Esteves Cardoso...