«(...) É uma pena que essas expressões, que contam séculos de história da língua, estejam morrendo (algumas já estão mortas e sepultadas). (...) »
Vocês já devem ter notado que o português tem várias palavras ou expressões que se usam num único contexto e por isso mesmo estão dicionarizadas junto a esse contexto, não é?
Palavras como tona, toa, léu, dentre outras, só ocorrem em expressões como «vir à tona», «estar à toa», «andar ao léu»… Além dessas, temos «à queima-roupa«, «por um triz», «em riste” (referindo-se unicamente a «dedo»), breca (só nas expressões «com a breca», hoje desusada, e «levado da breca»), caramba (só em «pra caramba» e na exclamação «Caramba!»), «de soslaio», «às pressas», «de esguelha», «de supetão», «às arrascas», «tintim por tintim», além dos antiquados «à socapa», «à sorrelfa», «sem tir-te nem guar-te», «de truz», «à mancheia» e «aos borbotões.
Muitas dessas palavras eram de uso corrente no passado (por exemplo, truz significa “ruído de queda, estrondo”), mas caíram em desuso, ficando cristalizadas apenas em expressões que usamos no dia a dia, as mais das vezes sem sequer suspeitar de seu significado ou sua origem.
Tona é a superfície da água, logo «vir à tona» é emergir até a superfície. Só que (quase) ninguém diz: «Tenho medo de me afogar, por isso não mergulho, só fico boiando na tona da piscina.» Uma curiosidade: tona, do latim tunna, significava originalmente «casca de árvore, pele fina»; foi daí que surgiu a metáfora de designar a superfície da água de tona.
Do mesmo modo, toa, do inglês tow, era a corda que amarrava um navio a outro; hoje, «andar à toa» é «andar a esmo, sem destino». Quem está à toa na vida, como na canção de Chico Buarque, está sem fazer nada, sem propósito; quem diz coisas à toa é porque não tem o que dizer.
E léu? Vinda do occitano, língua do sul da França que foi muito importante na Idade Média e legou muitos vocábulos ao português, essa palavra quer dizer «ócio». «Estar ou andar ao léu» é não ter nada para fazer (quem me dera!).
«Queima-roupa», palavra composta que só ocorre em «atirar à queima-roupa» e, metaforicamente, em «dizer ou perguntar à queima-roupa», é autoexplicativo: quando se atira em alguém de muito perto, a pólvora da bala queima a roupa da vítima. Logo, «à queima-roupa» é usado em diversas situações em que se age agressivamente e sem rodeios.
E por falar em atirar, quando se diz que «a bala passou por um triz» ou que «Fulano escapou por um triz», a ideia é que faltou muito pouco para que algo muito ruim acontecesse. Triz, do grego thrix, «fio de cabelo», é um quase nada. Um fio de cabelo é a distância entre a trajetória da bala e o corpo do alvo.
Já que falamos em triz, vamos ao truz. Como disse mais acima, trata-se de uma onomatopeia para ruído de golpe ou queda. Só que «pessoa de truz» é pessoa notável, distinta, de valor. Será que pessoas assim fazem esse ruído?
Na Idade Média, riste, do espanhol ristre, era o suporte em que os cavaleiros repousavam a lança em posição horizontal. Daí o «dedo em riste», uma analogia com a posição horizontal da lança e seu formato retilíneo e agudo. Hoje, quando não há mais cavaleiros nem justas medievais em que se usam lanças, o significado original de riste se perdeu.
Breca, «cãibra», passou a ser uma das denominações do Diabo (como cão, tinhoso, cramulhão, etc.). Daí que a exclamação «Com a breca!» é equivalente a «Com os diabos!» e subentende a imprecação «Vá com os diabos, vá para o Inferno!». Pela mesma razão, uma criança «levada da breca» é um pimpolho cuja alma foi levada pelo Diabo, portanto uma criança endiabrada.
Caramba, de origem sânscrita, mas que nos chegou pelo espanhol, denota admiração, mas passou a ser usado como eufemismo para um termo chulo de sonoridade parecida, o qual originalmente era apenas uma estaca ou mastro de navio, que, por sua forma ereta, se tornou metáfora para pênis.
Também do espanhol, soslaio é «posição oblíqua», donde «olhar de soslaio» é «olhar de esguelha», outra palavra de pouco e restrito uso.
A expressão «de supetão» contém a palavra de uso único supetão, corruptela de subitâneo, derivado de súbito; por sinal, paralelamente a súbito, temos em português os adjetivos populares súpeto e súpito.
Arrascas, da expressão «às arrascas», vem do verbo espanhol arrascar, forma popular de rascar, «raspar» (daí falar-se de uma voz rascante). Fazer algo às arrascas é fazer à força, como que raspando.
Tintim é onomatopaico e representa o ruído de copos de vidro colidindo – é por isso que, ao brindarmos, dizemos «Tintim!». Mas «tintim por tintim» é «nos mínimos detalhes»; nesse caso, tintim é sinônimo de detalhe, pormenor.
Bem, faltou falar daquelas expressões que hoje não se usam mais, mas com as quais nos deparamos ao ler os clássicos. «À socapa» significa «às escondidas» (por sinal, escondidas só se usa nessa expressão, assim como pressas em «às pressas», cujo termo usual é pressa). Sua origem é a expressão «sob capa», isto é, oculto sob uma capa. Já «à sorrelfa» remete a sorrelfa, «disfarce para enganar», portanto o sentido é o mesmo de socapa.
«Sem tir-te nem guar-te» quer dizer «sem cerimônia, repentinamente, sem aviso prévio». Trata-se de uma corruptela da antiga expressão «sem tira-te nem guarda-te», isto é, sem que a pessoa pudesse tirar-se ou guardar-se, logo proteger-se de algum ataque.
Mancheia vem de «mão cheia, punhado». Quem lembra destes versos de Castro Alves: «Oh! Bendito o que semeia livros, / livros à mancheia. / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe que faz a palma, / É chuva que faz o mar.»? Talvez poucos lembrem, já que livros hoje em dia têm tido pouca chance de germinar palmas e, por conseguinte, fazer pensar, não é?
Mas «livros à mancheia» é o mesmo que «livros aos borbotões». E borbotão é um forte jorro d’água, como o de uma grande cascata. A metáfora com a ideia de «grande quantidade» é óbvia, não? É uma pena que essas expressões, que contam séculos de história da língua, estejam morrendo (algumas já estão mortas e sepultadas).
Apontamento que o linguista brasileiro Aldo Bizzocchi publicou no blogue pessoal Diário de um Linguista em 2 de outubro de 2023.