«(...) Curioso como certas palavras, que já foram bastante vivas na língua, hoje sobrevivem numas poucas expressões cujo significado é desconhecido da maioria dos falantes. (...)»
Duas semanas atrás, publiquei uma lista de palavras da língua portuguesa que só ocorrem numa única expressão, isto é, estão fossilizadas numa fórmula pronta e jamais ocorrem fora dessa fórmula. Só que alguns leitores reclamaram da falta de certas expressões; por isso, estou elencando mais algumas. São elas «a esmo», «às avessas», «sem eira nem beira», «ao deus-dará», «de chofre», «de enfiada» e «ao bel-prazer».
«A esmo», que significa «ao acaso» e é expressão equivalente à anteriormente citada «à toa», contém o termo esmo, «cálculo aproximado, estimativa grosseira», derivado de esmar, do latim aestimare, estimar. E aestimare contém o elemento aes, que quer dizer «bronze, metal precioso» e, consequentemente, «dinheiro». Logo, estimar era primeiramente avaliar o preço de uma mercadoria.
«Às avessas» contém a palavra avessas, a qual tem a ver com avesso, do latim adversus, que também nos deu por via culta adverso. A ideia por trás dessa expressão é bem transparente: «às avessas» significa «de forma contrária ao usual ou ao que recomenda o bom senso».
«Não ter eira nem beira», como se sabe, é o mesmo que «não ter um tostão furado» ou «não ter onde cair morto». Beira hoje em dia é apenas a beirada ou borda de uma superfície, mas no passado significava algo que tem a ver com o desusado eira. É que, até o século XIX, eira e beira eram os nomes do térreo e do primeiro andar dos sobrados. Os ricos moravam em casas de dois andares; os pobres, em casas térreas. Logo, quem não tivesse eira nem beira simplesmente não tinha onde morar, era morador de rua ou indigente.
«Viver ao deus-dará» é viver sem recursos, sujeito às vicissitudes da sorte, abandonado ao próprio destino. É que antigamente, diante de tantas adversidades, os desvalidos, geralmente muito religiosos, costumavam dizer num tom misto de conformismo e esperança que na hora do aperto Deus lhes proveria. Perguntados como iriam se virar, respondiam: «Deus dará».
«De chofre» e «de enfiada» são expressões um tanto antiquadas, mas cuja menção vale a pena. Chofre, palavra onomatopaica, quer dizer «choque repentino» e também «tiro ao pombo», prática abjeta que alguns idiotas chamam de esporte, além de «tacada de bilhar». Portanto, «de chofre» significa repentinamente.
Enfiada é uma fileira de coisas, especialmente objetos atravessados por uma mesma linha, como as contas de um colar. Logo, «de enfiada» remete a uma grande quantidade de coisas entrouxadas de uma só vez, como um amontoado de informações que se dá a alguém sem que haja tempo de o cérebro processá-las. Antigamente se dizia, por exemplo, que fulano havia dito uma enfiada de disparates.
Finalmente, «fazer algo ao seu bel-prazer» contém a palavra composta bel-prazer, junção de bel, forma apocopada de belo, e prazer, cujo significado é «arbítrio, vontade própria».
Não é curioso como certas palavras, que já foram bastante vivas na língua, hoje sobrevivem numas poucas expressões cujo significado é desconhecido da maioria dos falantes?
Apontamento que o linguista brasileiro Aldo Bizzocchino blogue pessoal Diário de um Linguista em 24 de outubro de 2023.