« (...) Um dos valores cimeiros de um país, de um povo, é precisamente a sua língua. (...)»
A língua portuguesa «é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver, acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura; para falar é engraçada, com modo senhoril; para cantar é suave, com um certo sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo; escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura da francesa e a elegância da italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé de sua antiguidade (...). E, para que diga tudo, só um mal tem e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.»
Estas são palavras da obra Corte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, um escritor português do século XVII.
Sim, já no século XVII se reconhecia o valor da língua portuguesa e, sim, já se lamentava a afronta que lhe era feita.
Passaram-se quatro séculos, e agora é a Comunicação Social, com a extraordinária influência que tem, que contribui para que a língua portuguesa seja mal utilizada, deturpada e até suprimida, sendo muitos dos vocábulos portugueses substituídos por palavras e expressões de outras línguas.
A começar pela RTP, contrariando o que lhe obriga o estatuto de televisão pública portuguesa.
Vejam-se alguns títulos de programas com grandes audiências: Joker, The Voice Portugal, The Voice Kids, Got Talent Portugal, The Floor, Master Chef Portugal… (Quase todos formatos internacionais, faz toda a diferença como eles são emitidos na televisão espanhola: com os nomes adaptados em castelhano.)
Um canal privado, a CNN Portugal, vai ao ponto de assinalar vários espaços informativos do original norte-americano: Breaking News, CNN Top Story e CNN Prime Time. Um outro optou mesmo pela denominação em inglês: NOW. E há, até, um concurso promovido por uma operadora de comunicações com o propósito explicito de «premiar, celebrar e valorizar a Música Portuguesa», intitulado… Play – Prémios da Música Portuguesa!
Aqui há uns anos, um ministro da Economia promoveu e pagou (6 milhões de euros, como foi noticiado na altura) uma campanha publicitária turística do Algarve, assente nesta ideia: «Para vender melhor» o Algarve aos estrangeiros, o nome Algarve passou a ser... "Allgarve". E explicou o motivo: «All em inglês quer dizer "tudo", e, portanto, a ideia é juntar a marca tradicional do Algarve à ideia de tudo.» Acrescentou ainda porque não o incomodava «nada» que um nome português fosse adulterado com um elemento linguístico de uma língua estrangeira: «O Turismo olha para os nacionais, mas o Turismo é essencialmente para os estrangeiros.»
Estas palavras fazem lembrar o antigo «provincianismo português» analisado por Fernando Pessoa, essa admiração cega por hipotéticas monumentalidades, ou, ainda, uma das páginas finais d'Os Maias, em que Eça de Queirós, pela boca da personagem Ega, a propósito das botas despropositadamente compridas dos cavalheiros da época (século XIX), ridiculariza «o Portugal contemporâneo»: «Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha… Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado, exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta – imediatamente o janota estica-o e aguça-o, até ao bico de alfinete...»
No século XXI, Portugal não precisa de seguir «modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha…», de palavras... É um país que pode e deve preservar a sua identidade cultural e divulgar o que a valoriza.
E um dos valores cimeiros de um país, de um povo, é precisamente a sua língua.
Todos os vocábulos estrangeiros abusivamente utilizados não só em programas de entretenimento como em entrevistas, notícias ou até em programas culturais têm uma correspondência no léxico português.
Usar a língua portuguesa também contribui para o enriquecimento histórico, lexical e cultural dos portugueses.
Atualmente, como sabemos todos, assiste-se a um cada vez menor domínio do idioma nacional por parte das gerações mais jovens, nomeadamente no que diz respeito ao vocabulário, o que significa menor conhecimento cultural.
Uma realidade a que não se pode furtar, especialmente, a RTP, cujo estatuto de serviço público lhe impõe obrigações suplementares na promoção da Língua Portuguesa. Concretamente:
– No primado do uso de vocábulos portugueses, tanto nos espaços informativos como nos da programação;
– Pela tradução de todos os títulos de programas de origem estrangeira;
– Com a regular transmissão de programas para diferentes idades que contribuam para o desenvolvimento lexical das pessoas em geral e dos jovens e das crianças em particular (pequenos programas informativos ou didácticos, programas lúdicos, concursos, adivinhas...).
Cabe à RTP contribuir para os portugueses solidificarem um melhor conhecimento do idioma nacional, se apercebam da sua riqueza, enfim, gostem mesmo da sua língua!
P.S. – Fica a esperança da devida consagração da língua portuguesa, como questão estratégica nacional, no Código da Comunicação Social anunciado para este ano pelo ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte.
Artigo de opinião da professora Maria Regina Rocha incluído no jornal Público em 17 de fevereiro de 2025 e aqui disponibilizado com a devida vénia.