«Permita-me apenas uma preciosidade, um salto de frequência: pelos vistos, o avião de Marco Rubio já está bom? Porque Marco Rubio era para ter vindo à conferência de segurança de Munique e o avião fez meia-volta no Atlântico, o que é interpretado por alguns areópagos como um sinal para a Europa. Mas isso é outro pormenor. Pelos vistos os EUA não têm mais aviões. Marco Rubio não veio à Europa, mas vai agora ao Médio Oriente.»*
CNN, 15 fevereiro 2025, 10h22.
Um conhecido comentador de assuntos militares da CNN Portugal utilizou, no trecho acima, a palavra preciosidade e, na verdade, o que deveria ter dito era preciosismo. É um erro de paronímia, pois preciosidade e preciosismo são palavras com uma escrita similar, diferindo apenas na terminação, mas com significados distintos. Na frase não pode estar «preciosidade» porque não se está a distinguir algo raro ou valioso, mas sim «preciosismo», que significa «pequeno detalhe, pormenor subtil, subtileza, resultado de uma análise mais elaborada, que pode fazer a diferença», e que o comentador quis enfatizar.
É curioso registar alguma desatualização semântica na definição da palavra preciosismo, que surge na maioria dos dicionários que consultámos, e de que deixamos aqui os links dos que estão online:
Priberam
Infopédia
Dicio
Caldas Aulete
Michaelis
Cândido de Figueiredo
Percorrendo as definições, nelas encontramos: «afetação, artificialismo, refinamento, delicadeza, subtileza, exagero, sofisticação, perfecionismo na linguagem ou no comportamento».
De entre eles, o Michaelis talvez seja o que mais se afasta do sentido da língua em ato.
«preciosismo
1. Fenômeno social e literário que se desenvolveu na França na primeira metade do século XVII. No aspecto social, caracterizou-se por uma desmedida preocupação com a etiqueta e a elegância e o excesso de sutileza no falar e no escrever. Na literatura, distinguiu-se, principalmente, por uma linguagem rebuscada, cheia de metáforas, hipérboles e perífrases.
2. por extensão, pejorativo Modo afetado de ser, de agir ou de falar; falta de naturalidade.»
Aparente e curiosamente, é o mais cooperativo e menos regulado deles, o Dicionário Informal, aquele que apresenta algumas definições mais consentâneas com o uso atual e mais generalizado da palavra, e que reflete a opção mental do comentador da CNN, apesar de na prática ter errado. Das sete definições, respigamos aquela que foi mais bem avaliada pelos falantes e escreventes que o consultaram:
«Pequeno detalhe, precisão ou exatidão definitória com grande ou pouca importância para seu(s) usuário(s).»
Etimologicamente, preciosismo provém de precioso + -ismo, enquanto preciosidade provém do latim pretiositāte-. Ambas as palavras têm a ideia de valor na raiz, mas seguiram caminhos semânticos diferentes. Na verdade, preciosismo começou por ser um estilo literário, derivado do francês préciosité, que, por se tratar de um estilo, de uma tendência, de um movimento, foi traduzido e consagrado na língua com o sufixo -ismo, como acontece com classicismo, romantismo, realismo, simbolismo, modernismo, neorrealismo, etc.
O preciosismo, que na Península Ibérica também tomou muitas vezes a designação de gongorismo, caracteriza-se pela afetação e requinte no falar e no escrever, à maneira do que era uso, em França, no século XVII. O preciosismo procura o seu efeito na subtileza dos pensamentos e no refinamento das expressões, substituindo as palavras e expressões vulgares por circunlóquios, metáforas, hipérboles e perífrases. A beleza e a originalidade não residem no que se diz mas na forma como se diz. Em vez de sol pode dizer-se «facho do dia», em vez de olhos «espelhos da alma», em vez de guerra «mãe da desordem»1.
Expressões que eram benquistas e vistas como sinónimo de delicadeza, de subtileza de estilo e de refinamento nos salões literários do século XVII, e mesmo fora deles, foram, ao longo do tempo, sendo consideradas como uma demasia, um exagero, ganhando mesmo um cariz pejorativo, afetado, ridículo até. Hoje, preciosismo, não deixando de ter os significados de afetação requintada e também delicadeza ou subtileza de estilo, refinamento exagerado no falar, no escrever, no comportamento, etc., é sobretudo utilizado para significar uma minúcia, um detalhe excessivo, supérfluo ou relevante, consoante o contexto, ou um exagero, como nos mostram estes excertos do CETEMPúblico:
«Em Alenquer, onde, passe o preciosismo, o Palácio de Justiça só estará pronto em 1996 (e não 1995), doze funcionários dividem entre si três pequenas salas com cerca de 16 metros quadrados» .
«Aliás, um dos observadores do processo, professor de Ciência Política, John Makumbe, disse ao Público ser óbvio que a realização das eleições era um preciosismo legal, pois que se os dois adversários de Mugabe se tinham afastado da corrida o senso comum deveria ter levado a anulá-las».
«Sem nos prendermos ao preciosismo das datas, que não são mais do que marcos simbólicos referenciadores, sugerimos a correção da gralha no que se refere à data de nascimento de Cassiano Branco para 13 de agosto de 1897 (conferir registo e certidão de nascimento) e não a 15 do mesmo mês».
«Com a particularidade – podemos mesmo considerar preciosismo – de os convivas terem chegado ao mesmo tempo que o avião».
«Com a particularidade – podemos mesmo considerar preciosismo – de os convivas terem chegado ao mesmo tempo que o avião».
1 Grande Enciclopédia Portuguesa-Brasileira, vol. XXIII, p. 84.
* Apresenta-se o registo em vídeo (disponível no canal do Ciberdúvidas no Youtube):