Poucos meses atrás, numa renomada universidade pública do Rio de Janeiro, fui a uma palestra sobre a história das gramáticas tradicionais escritas por autores brasileiros – que usavam predominantemente a linguagem literária como base da norma culta: de 1806, com Antônio de Morais Silva, até 1985, com Celso Cunha.
O palestrante, doutor em História das Ideias Linguísticas, por diversas vezes, mostrou semelhantes trechos de diferentes gramáticos brasileiros dos séculos XIX e XX indicando o corpus usado em suas gramáticas, a saber: «os bons escritores do idioma», ou «os melhores escritores do idioma», ou «os grandes escritores do idioma», ou «os escritores clássicos do idioma»... e quejandos.
O que me surpreendeu foi a pergunta retórica, com sorriso irônico no rosto, que saiu de sua boca em seguida:
– Como assim "grandes" escritores, "bons" escritores, "melhores" escritores? Quem determina isso senão o gosto pessoal do próprio gramático?
A plateia riu, assentindo, com o mesmo sorriso irônico no rosto.
Diante de tamanho absurdo, não levantei a mão para refutar. Fiquei na minha. Coração acelerado. Adrenalina a mil. Cérebro coçando. Arquivei.
Hoje acordei pensando nessa dissonância cognitiva com a qual certos linguistas vêm alimentando sua alma com relativizações que negam a realidade de existirem textos mais bem escritos do que outros, isto é, de simplesmente existirem indivíduos que escrevem melhor do que outros e que, portanto, devem ser tomados como referência maior de exemplaridade idiomática.
Sempre me passou pela cabeça a ideia de que quem defende a verdade como algo relativo carrega consigo a contradição dum pensamento absolutista.
Segundo esses mesmos linguistas, a «verdadeira norma culta» não é a média de usos em comum extraída da boa linguagem literária, e sim (pasmem!) da linguagem jornalística e técnica.
– Beleza, Pestana. Mas... fazendo o advogado do diabo... como determinar se alguém é um bom escritor a ponto de ser tomado como referência, ou seja, como modelo do que é o melhor naquilo que ele se propõe a fazer, isto é, escrever bem?
Ora, só se sabe se alguém é um bom escritor pela qualidade de seus textos. Essa opinião não é minha.
Eis o que disse o linguista dinamarquês Otto Jespersen no livro Mankind, Nation and Individual (1946: 91):
«We set up as the best language that which is found in the best writers, and count as the best writers those that best write the language.»*
– Mas como se mensura isso?
Pense: como se mensura a qualidade das ações de alguém que passa a ser tomado como REFERÊNCIA no futebol, como Pelé; na pintura, como Van Gogh; na física, como Einstein; na filosofia, como Aristóteles; na música, como Beethoven; na química, como Marie Curie; na dramaturgia, como Meryl Streep; na linguística, como Noam Chomsky; etc.?
Simples: foram/são pessoas fora da curva.
Em outras palavras: a capacidade de elevarem o nível do seu ofício a outro patamar, reconhecida e flagrantemente acima da maioria, é que os tornou referenciais de qualidade incontestável na sua área.
Note o seguinte: todos foram originais, inconfundíveis, insólitos, gerando uma admiração praticamente unânime não só entre os seus pares como também entre a maior parte das pessoas de cultura elevada.
O ponto é este: tais homens e mulheres gravaram o seu nome na história mundial (no espaço e no tempo) por causa de sua capacidade superior – acima da média!
Se você digitar no Google ou procurar em livros especializados, encontrará na literatura mundial e nacional sempre os mesmos nomes daqueles que se destacaram em sua área.
Homero nasceu por volta dos anos 800 a.C. e é até hoje lido. Dante nasceu nos anos 1200 e até hoje é lido. Camões, Cervantes e Shakespeare nasceram nos anos 1500 e até hoje são lidos. Mais do que lidos: são produtos culturais eternizados em forma de outros tipos de arte, como pintura, teatro, cinema, artesanato, etc. A lista é enorme em todas as línguas de cultura, como o italiano, o francês, o espanhol, o alemão, o inglês, o português, etc., sobretudo se levarmos em conta igualmente os escritores dos séculos XIX e XX – e nós, brasileiros, temos muitos deles em nosso cânone literário.
Como isso é possível, senão pela alta qualidade da escrita (universal e atemporal) desses indivíduos?
Pois é...
Digo mais: se não existisse tal coisa de "melhor", "bom", "grande" escritor, não haveria especialistas no assunto explicando as razões desse fato, como se vê no livro de Ítalo Calvino Por que ler os clássicos?.
Digo mais (parte 2): até mesmo os que são excelentes escritores não literários só o são porque se alimentaram da leitura de grandes escritores clássicos do seu idioma.
Digo mais (parte 3): se não existisse tal coisa de "melhor" escrita, não haveria especialistas no assunto explicando as razões desse fato, como se vê na breve lista de livros abaixo que orientam, direta ou indiretamente, quais são os caminhos para escrever bem – caminhos já delineados pelos maiores escritores do idioma:
– Antônio Suárez Abreu. Curso de Redação.
– Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Oficina de texto.
– Ingedore Villaça Kock & Vanda Maria Elias. Ler e escrever: estratégias de produção textual.
– José Luiz Fiorin e Francisco Platão Savioli. Para entender o texto: leitura e redação.
– Steven Pinker. Guia de escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e inteligência.
– William Zinsser. Como escrever bem: o clássico manual americano sobre escrita jornalística e de não ficção.
– Paulo Rónai. Como aprendi Português.
– Nilce Santanna Martins. Introdução à Estilística: a expressividade na língua portuguesa.
– William Campos da Cruz. Tudo converge para o texto.
– Othon M. Garcia. Comunicação em prosa moderna.
Resumo da ópera: sempre que alguém – independentemente do título que detenha ou ostente — insistir na relativização de que os adjetivos bom, grande, melhor, maior, exemplar, modelar etc. não podem ser aplicados aos escritores do idioma que fazem parte do cânone literário luso-brasileiro delineado pelos nossos melhores críticos literários (Antônio Cândido, Massaud Moisés, Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, Afrânio Coutinho etc.), respire fundo, continue lendo e consumindo boa literatura para chegar à conclusão de que os modelos de norma culta existentes nas gramáticas normativas devem ser levados em conta, pois são fruto de uma linguagem cuidada, polida, refinada, CULTIVADA – da qual advém a verdadeira norma CULTA.
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Importante: a norma culta, como toda norma linguística, muda com o tempo, no entanto é preciso fiar-se sempre nestas coerentes palavras do gramático Napoleão M. de Almeida:
«Culto, Cultivado – Culto é sinônimo de cultivado, na acepção de civilizado, ilustrado. O próprio verbo cultivar possui, entre outros, o significado de aperfeiçoar-se, aplicar-se a, ilustrar-se em...Se numa acepção se diz "cultivar o campo”, em sentido figurado se diz "cultivar o espírito”, "cultivar a memória”. Não nos admiremos, por conseguinte, da sinonímia entre as formas participiais culto e cultivado.» (Dicionário de Questões Vernáculas, 1981, p. 71.)
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Para mais detalhes sobre esse tema, sugiro a leitura da minha dissertação de mestrado: O (pseudo)abismo entre a norma-padrão contida nas gramáticas normativas do português e a norma culta escrita do português brasileiro contemporâneo (2023).
* Tradução livre do inglês: «Estabelecemos como a melhor língua a que se encontra nos melhores escritores e consideramos como os melhores escritores aqueles que melhor escrevem a língua.»