«(...) É impossível à democracia discutir os temas relevantes para os grupos sociais se as pessoas não têm sequer conhecimento deles. (...)»
«É vedado o uso, em qualquer contexto ou disciplina, de linguagem que empregue o gênero neutro.» Esse é o teor do Projeto de Lei 198/2023, que tramita na Câmara dos Deputados, e pretende a alteração da Lei de Diretrizes e Bases na Educação para proibir a linguagem neutra nas escolas.
A linguagem neutra, também chamada de «não binária» ou «não sexista», é aquela que não especifica o gênero das palavras para evitar a binariedade entre feminino e masculino. Seus defensores utilizam no lugar dos pronomes masculino e feminino a vogal e, como em “todes” no lugar de todos ou todas, ou a consoante x, como em "amigx" no lugar de amigo ou amiga.
É uma proposta defendida como meio de não excluir as pessoas que não se sentem enquadradas nos gêneros masculino e feminino, tendo, no Brasil, como maior expoente “i ativisti” Pri Bertucci, “autorie” do Dossiê de Linguagem Neutra e Inclusiva, um livro que propõe a transformação da língua portuguesa para adoção da linguagem não binária. “Criadorie” da linguagem neutra no Brasil, “eli” acredita que é preciso modernizar nossa língua para refletir os comportamentos do mundo atual.
Embora pareça um tanto estranho, no tema não comporta ridicularizações. Ao contrário, exige uma reflexão profunda sobre até que ponto nossos comportamentos refletem uma postura respeitosa para quem pensa ou age diferente. Lembremos que a exclusão do diferente está na base das grandes atrocidades praticadas pela raça humana, como a Inquisição, a Escravidão e o Holocausto.
Por isso, é preciso ter muita calma na hora de tratar de temas tão sensíveis como este, da linguagem neutra. Não podemos simplesmente ignorar que há pessoas que não se sentem representadas pelos gêneros masculino e feminino e, por isso, pedem que as tratemos por um outro tipo de pronome, um que seja neutro. O fato de representarem uma parcela menor da sociedade não justifica o desprezo da maioria, porque tal argumento autorizaria também desprezar, por exemplo, a cultura dos povos originários, o que soa impensável.
A língua é sem dúvida a principal ferramenta da comunicação humana, e ninguém contesta que ela está em constante mutação. Por exemplo, o gênero neutro era adotado no Latim, a língua que deu origem ao idioma português. É bem verdade que ele era utilizado para designar objetos inanimados, como um castelo (castrum) ou o mar (pelagus). Ainda hoje o português carrega palavras que provêm do gênero neutro em Latim, como corpus e curriculum.
Com o tempo, a Língua Portuguesa passou a utilizar o gênero masculino para designar também o gênero neutro, como acontece com a palavra todos. Mas essa generalização pela utilização do masculino incomodava o movimento feminista, que não se via representado, obviamente, pelo pronome masculino, de maneira que se passou a defender uma linguagem que incluísse o gênero feminino. Por isso começamos a ver empregados nos discursos as palavras «todos e todas», ou «todas e todos». Seguiu-se, então, ao lado da chamada linguagem inclusiva, a demanda pela linguagem neutra, de onde veio o «todos, todas e todes».
Trata-se de uma espécie de neologismo fundamentado numa posição ideológica que não se pode deslegitimar, senão por um pensamento preconceituoso. Explicando melhor, os neologismos são as novas palavras ou novos significados que ingressam inicialmente no vocabulário popular e, posteriormente, nos dicionários, como deletar, escanear, digitalizar e bugar. Essas palavras vieram do idioma inglês com o avanço da informática, mas foram “aportuguesadas” pelo dito popular e inseridas no vocabulário corrente.
Ao que me lembro, a utilização dessas novas palavras, como deletar e escanear, não sofreram tantas críticas ou foram objeto de um projeto de lei que as proibissem. E não foram porque nasceram de uma necessidade prática, utilitarista, sem uma identificação com alguma crença ou cultura ancestral. É diferente quando um neologismo, como “todes”, vai fundo em nossos “pré…conceitos”, isto é, nas convicções formadas pela cultura que bebemos desde o nascimento e que brotam em nossa mente mais rapidamente que qualquer reflexão.
Não penso, todavia, que alguém seja obrigado a usar a palavra “todes” em seu discurso, ou que devemos jogar pedra (metaforicamente) em quem ainda utiliza a palavra todos, ao invés de «todos e todas». Eu acho o proselitismo algo chato. Penso que a modificação da linguagem é algo que acontece mais sutilmente, pelo consenso social, em diferentes esferas e tempos.
Mas, sim, é pela conscientização que a mudança ocorre, o que significa dizer que ela somente aparece quando nos tornamos conscientes de que o diferente existe. Sem dúvida, a escola é um ambiente propício para mostrar as novas demandas sociais, ou seja, para conscientizar.
Já tratei em outro texto da palavra alteridade. É a capacidade de colocar-se no lugar do outro, de ver o outro não por seus olhos, mas pelos olhos dele. Esse seria, a meu ver, o papel da escola quanto às demandas legítimas das pessoas trans, como também dos outros grupos sociais culturalmente excluídos ou diminuídos.
Ora, é impossível à democracia discutir os temas relevantes para os grupos sociais se as pessoas não têm sequer conhecimento deles.
Mas não entendo, contudo, que a solução seja impor, dentro das escolas, a linguagem neutra. Como disse, penso que a linguagem, como fenômeno cultural, é algo que acontece sutilmente, que se propaga organicamente. Na verdade, essa imposição pode causar o efeito deletério de reforçar o preconceito contra as pessoas trans.
Penso que a linguagem é como o rio da metáfora de Heráclito (535 a 475 a.c.): «Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários.»
Deixemos o rio fluir.
(...)
Cf. «A língua não deve servir apenas um passado», mas há resistência à mudança: afinal o que é linguagem inclusiva? Cinco perguntas e respostas + A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”? + «Pessoas que menstruam». Governo concorda com DGS
Artigo publicado no jornal brasileiro Primeira Página, em 25/03/2023 (aqui transcrito com a devida vénia)