« (...) A estranheza e a iliteracia a respeito de tudo o que está além da heteronormatividade são generalizadas. E são produtos da imposição massiva de um sistema patriarcal, por via da colonização cultural e religiosa de que a Europa foi protagonista. (...)»
As demandas por uma linguagem inclusiva e não violenta e por uma literacia sobre o colonialismo ou sobre os géneros e sexualidades são encaradas como o prenúncio do apocalipse civilizacional e uma ameaça existencial para os homens brancos, binários e cis-hétero. Ponto prévio: usarei o feminino como a opção de linguagem inclusiva. Não que o “todes”, que preocupa o dr. Pacheco Pereira, me incomode, mas estarei sempre a referir-me a pessoas e o feminino deveria ser tão aceite como neutro linguístico como o masculino. Começo por aqui porque importa relembrar que a linguagem é reflexo das estruturas epistémicas e políticas e também um exercício de poder; por vezes, de violência. Disputá-la não é um entretenimento para ativistas desocupadas. É inevitável para mudar a estrutura das inclusões e exclusões dentro de uma sociedade.
Para o dr. Pacheco Pereira mudar o “molde” das categorias e da linguagem é uma “obsessão” antidemocrática que exclui em vez de incluir. Mas que sentido faz que mais moldes criem menos liberdade? Que mais categorias anulem as que pré-existem? É de assinalar que há vieses que nem a mais virtuosa intelectualidade evita. Não se trata de proscrever a identidade branca e cis-hétero. Não é ela que está em causa. Nem é o direito à opinião. É o seu conteúdo, aquilo em que é parcial e desinformado e exige contraditório.
Em que medida uma União Negra das Artes e uma sigla (LGBTQIA+) são tamanha ameaça? Precisam as pessoas brancas e hétero de uma união ou de um novo lobby para as proteger ou visibilizar? Quando a visibilidade e a suposta normalidade da identidade branca e cis-heteronormativa estão de tal forma impregnadas nas estruturas culturais, simbólicas e linguísticas que nada para além dela se reconhece? Se outros lobbies e categorias se procuram é porque a força hegemónica da branquitude e do patriarcado é tão estrutural, ubíqua e invisível, que se propõe como realidade universal e intemporal.
A estranheza e a iliteracia a respeito de tudo o que está além da heteronormatividade são generalizadas. E são produtos da imposição massiva de um sistema patriarcal, por via da colonização cultural e religiosa de que a Europa foi protagonista. Nesta matriz, sexo, género, afeto e desejo organizam-se na dicotomia macho-fémea e são decorrências lineares uma da outra e da biologia. Estas crenças são tão profundas que a “realidade”, biológica e histórica, da existência de outras configurações de género e sexualidade, é encarada com tal perplexidade e desconforto que se toma como invenção e ridícula.
Para a maioria e para o dr. Pacheco Pereira: assistimos a um «surto» ou «doença obsessiva das identidades», não há diferença entre o sexo biológico e os papéis de género histórica e culturalmente construídos, e não existem estruturas e entidades que atribuem de forma prescritiva um género, masculino vs. feminino, em função de um conjunto tipificado de características morfológicas. Comecemos pelo mais fácil de entender. Para as pessoas intersexo, o sexo biológico é definido por médicos e pelos pais. Se até esta realidade é difícil de reconhecer, mais difícil será aceitar que o espectro do sexo biológico inclui variações genéticas, fisiológicas, hormonais e morfológicas muito além do binário. Não desfazer estes equívocos projeta uma visão binária e essencialista das identidades e do desejo, afetos e sexualidades.
Neste sistema de crenças, a dicotomia é vital para a espécie. Reduz-se a sexualidade à necessidade de procriar e as famílias, intimidades e identidades ao casal monogâmico e cis-heterossexual. Uma sexualidade entre pares não heterossexuais e que serve para o prazer está proscrita. Estas crenças persistem mesmo tendo a ciência desmontado os vieses patriarcais e essencialistas das teorias evolutivas, sobre o binário, a função exclusivamente reprodutora da sexualidade, a universalidade da divisão tradicional do género, na espécie humana como aliás em outras. Fica, a propósito, um artigo fresquinho: Overthrowing the Patriarchy Through Ecstatic Sex
Há também a crença mais benévola de que a discrição protege as pessoas. Ser estridente e “despropositada” não é comportamento que as elites apreciem. Diz-se que «afinal as pessoas hoje podem ser o que quiserem. Que mais poderão querer? Não estarão a exagerar? Sou heterossexual e não o esfrego na cara das pessoas. As pessoas devem proteger-se para evitar consequências. Ser fortes, sofrer em silêncio. A vida não é fácil para ninguém. As mentalidades demoram a mudar». Entende-se, assim, que as pessoas LGBTQIA+ devem reverência e discrição face à norma dos costumes heterossexuais e recatados. Não é a sociedade que lhes deve a mudança, para as poupar às agressões e obstáculos quotidianos, nas escolas, trabalho, saúde, mercado de arrendamento, na rua.
Mas mudança é um dever das sociedades. O “pedestal moral” não está ocupado pelas identidades LGBTQIA+, como preocupa o dr. Pacheco Pereira. Antes pelo contrário. O que se procura é precisamente destruir o estreito e exclusivo pedestal da moralidade branca, binária, cis-heteronormativa e monogâmica.
É possível continuar a viver as sexualidades discretamente, ser cis e hétero, manter famílias e divisões de género tradicionais, basta abdicar do conforto de ser a norma, moral ou linguística. As pessoas LGBTQIA+ não podem sacrificar-se em nome de uma norma obsoleta, restritiva e irrealista. A «lenta mudança das mentalidades» não acontecerá sem resistência, com silêncio e discrição. A visibilidade é um direito: a existir sem condições e violência. O orgulho é um lugar, cívico e político! Tem que ser reclamado ou os espaços da norma e poder jamais cederão.
A sigla não serve para nos incomodar. Ninguém vos proscreve se não a pronunciarem. Basta que a queiram conhecer. E, principalmente, que não persistam na obsessão (aqui sim) de a negar e na violência de a ridicularizar. Cada letra de LGBTTQQIAP+ corresponde a uma porção da realidade (das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, que questionam o género/sexualidade, intersexo, assexuais e pansexuais), que não pode ser negada e marginalizada pela desinformação e obscurantismo. Face a estes, a contranarrativa é um dever.
Precisávamos de mais aliados como o Dr. Pacheco Pereira. Queiram os homens e as mulheres brancas, cis-hétero estar disponíveis para ultrapassar a sua perplexidade e desconforto. Dececiona-me a opinião do dr. Pacheco Pereira a quem respeito muitíssimo, como o respeitam a minha mãe, os meus namorados, colegas e amigas. Há, no entanto, que fazer da deceção e da melancolia «estética para a resistência» e inquietação, diriam o Peter Weiss e o José Mário Branco.
«Não largues esta mão no torvelinho
Pois falta sempre pouco pra chegar
Eu não meti o barco ao mar
Pra ficar pelo caminho»
Cf.. Para muites, essa foi a maior surpresa + Linguagem inclusiva não é «capricho». É «igualdade e respeito» + Fará sentido usar a sigla LGBTQ + até chegarmos à «utopia» da igualdade? Seis activistas respondem + A liberdade das mulheres, outra vez + Glossário de gênero + O bullying dos opinion-makers + A fraude intelectual do pensamento pós-moderno + Aluga-se retrato (mulher trans negra) para uma boa discussão + Lei, ódio e progresso + Sabem que +? A linguagem nunca é neutra + Tomem lá mais um artigo para denunciarem à ERC e à CIG + A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”?
Texto transcrito do jornal Público de 14/07/2022, com a devida vénia, da autoria da psicóloga e docente universitária portuguesa Joana Cabral – contrariando o artigo "Porque é que “todes” não é todos, nem todas?", escrito pelo político e historiador José Pacheco Pereira, publicado no mesmo jornal no dia 9 de julho de 2022.