Apresigos, alheiras e janas encantadas - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Apresigos, alheiras e janas encantadas
Apresigos, alheiras e janas encantadas
Regionalismos gastronómicos e da mitologia

« (...) O que hoje conta para mim especialmente é que na minha aldeia se faz, ou fazia as moiras e as alheiras, uns inigualáveis fumados em que o primeiro apenas se distingue do segundo porque também levava uns 10 a 15 por cento de sangue congelado que, no momento certo era esfarelado à mão ficando parecido com a esferovite antes de cair dentro do grande alguidar e ser bem rodado com uma grande colher de pau. (...)»

 

Apesar de a ter comido muitas vezes à força, durante a infância, hoje gosto muito de sopa e ainda mais de certos apresigos.

Pesquisando a origem da palavra sopé, por causa do Marão e da aldeia onde nasci, fui dar aos terrenos da sopa e, em natural escorregadela, aos do apresigo, ou presigo, palavra de origem controversa que, hoje em dia, já quase ninguém usa, mesmo na minha região, e que significa comida acompanhável com pão, geralmente numa iguaria à base de carne de porco ou porca. Um étimo, portanto, de mastigação descontraída, que outros substituem por apeguilho, e que em francês é pitance, em espanhol acompañamiento, em alemão brotbeilage e em holandês beleg.

Por sua vez, presigar é o mesmo que apeguilhar, sendo que, neste caso, se está a comer moderadamente, um presigo pode ter carnes diferentes, ou mesmo ser uma açorda de bacalhau.

O que é facto é que, no meio destas insonsas pesquisas, fui parar a uma rumorosa mina escura que havia em Fornelos, com a entrada virada para uma minúscula vinha do meu já falecido tio Alberto e sempre a gemer água, misteriosa cavidade que ficou aterrada com as obras de alargamento da estrada para Fiolhais, Pomarelhos, com seu pelourinho manuelino, e Vila Real, a cidade próxima de Panoias e do seu monumento romano, onde o sangue das vítimas sacrificadas aos deuses era escorrido para pequenos tanques retangulares cavados no telúrico rochedo.

Dentro da mina desaparecida morava uma gemebunda moira encantada que deve ter ficado irrevogavelmente enclausurada e pode ter sido da família de um certo Ramiro, cujo nome significa «conselheiro famoso», ou «conselheiro ilustre», Ramirus em [latim], ou seja, uma forma latinizada de Ranomir, nome visigótico de formado pela união dos elementos germânicos ragin, que significa «conselho», e mari, que quer dizer «famoso e ilustre».

A maioria dos genealogistas considera que o visigótico nome Ramiro provém de Ramon, na língua germânica, e significa «aviso e protetor», vindo de Regimund, pelos elementos ragin («conselho, consulta, notificação ou aviso») e mund, «protetor». Dessa forma, a adoção do malquisto étimo se espalhou pela Europa no século V, em apelidos pouco respeitáveis como Raimundo, Raymonde, Raymundi, Rayde, Ramones, Rajmund, Raimunde, Raimondes, Raimo bem como Rimondas, entre outros.

A História conta que San Ramiro, padroeiro dos Ramírez, foi morto por visigodos arianos no século VI, enquanto cantava com os seus irmãos o belicoso Credo Niceno. As lendas, entretanto, dizem que as mouras encantadas, ou mouriscas, são espíritos, seres fantásticos com poderes sobrenaturais, pelo menos nos folclores galegos e portugueses, isto é, segundo a Wikipédia, uns «seres obrigados por oculta força sobrenatural natural a viver em estado de sítio, como que entorpecidos, enquanto determinada circunstância lhes não quebrar o encanto».

Por outro lado, antigos relatos populares, como a de Fornelos, por exemplo, registam que são «as almas penadas de donzelas que foram deixadas a guardar os tesouros que os mouros encantados esconderam antes de partirem para a mourama». São jovens donzelas de grande beleza ou encantadoras princesas «perigosamente sedutoras».

Nunca vi nenhuma e o que me dizem é que «aparecem frequentemente cantando e penteando os seus longos cabelos, louros como o ouro ou negros como a noite, com um pente de ouro, prometendo tesouros a quem as libertar», coisa que eu tanto gostava de fazer, antes de chegar, lá abaixo, ao forno romano que o meu pai foi o primeiro fornelense a descobrir, dúzia e meia de anos antes de eu nascer, num campo de milho marginal ao Arcadela.

Surgem como guardiãs dos pontos de passagem para o interior da terra, os locais “limite”, onde se acreditava que o sobrenatural podia manifestar-se, especialmente junto a fontes, pontes, rios, poços, cavernas, antigas construções, velhos castelos ou tesouros escondidos, como poderá ser o caso da estrada para a ponte, em Fornelos.

Julga-se que as lendas terão nascido em tempos pré-romanos e variam idiossincraticamente, segundo são irlandesas, bascas ou de outros países europeus. Leite de Vasconcelos admitia que as essas mouras lendárias tivessem assimilado as características das divindades locais, como ninfas e espíritos da natureza, e Consiglieri Pedroso tomou-as como «génios femininos das águas».

Na mitologia portuguesa há quem as designe por janas e na polaca são as moras e deixam o corpo do hospedeiro aquando do sono deste. Enquanto na Letónia Mãra é a deusa suprema e, na mitologia escandinava, Marac, ou Mare, é o espírito errante que deixa o corpo das mulheres durante a noite e vai causar pesadelos para outra freguesia.

Por tudo isto, o termo mouro não poderia derivar do latino maurus (natural da Mauritânia), mas antes do proto-celta mrwo, ou marwo, que significa «morto». Outras teorias dizem que a palavra pode ter saído do termo grego moira, que literalmente significa «destino» ou do céltico mori, que significa «mar» ou ainda de morwen, «sereia», ou maha e mahar, ambos com o significado de «espírito».

Seja como for, o que hoje conta para mim especialmente é que na minha aldeia se faz, ou fazia as moiras e as alheiras, uns inigualáveis fumados em que o primeiro apenas se distingue do segundo porque também levava uns 10 a 15 por cento de sangue congelado que, no momento certo era esfarelado à mão ficando parecido com a esferovite antes de cair dentro do grande alguidar e ser bem rodado com uma grande colher de pau.

Diga-se de passagem que, com a massa das alheiras e com a tripa do intestino grosso do porco, faz-se o divino chouriço que tem uma certa fermentação no fumeiro e, por isso, nada tem a ver com as nossas chouriças que são as alheiras e menos ainda com as linguiças. Estas, no resto do país, aparecem designadas como chouriços e é bem feita, já que são quase sempre de qualidade muito inferior. 

Fonte

Texto publicado no mural do Facebook do escritor e jornalista Carlos Coutinho, com a data de 18/09/2024. Título da responsabilidade do Ciberdúvidas.

Sobre o autor

Escritor e jornalista português, tendo trabalhado nos jornais O Século e O Diário, entre outros. Autor de um conjunto de obras literárias nas áreas da ficção, teatro e crónica jornalística, nomeadamente O Herbicida, (1972), A Última Semana antes da Festa (1974), Teatro de Circunstância (1976), A Estratégia do Cinismo, O Jantar do Comissário (1977); Recordações da Casa dos Mortos (1976); No País da Alegria (1976), Uma Noite na Guerra (1978), O que Agora me Inquieta,(1985), O Depoimento da Família Martins seguido de Homem Certo em Casa Certa (2011), e Balanço Precário (livro de memórias) (2020). Colaborador do Museu do Neo-Realismo.