« (...) Se o português europeu (PE) e o português brasileiro (PB) fossem línguas diferentes, os brasileiros que vão para Portugal não conseguiriam se comunicar com os portugueses, nem sequer conseguiriam trabalhar diretamente com o público nas dezenas de serviços que Portugal oferece aos brasileiros, como telemarketing, vendas, recepção – ou em qualquer outro país de língua portuguesa. (...)».
Duas semanas atrás, num espaço de lazer infantil do prédio onde moro, uma senhora portuguesa estava brincando (português do Brasil) ou a brincar (português de Portugal) com a sua netinha portuguesa no balanço (português do Brasil) ou baloiço (português de Portugal), e a menininha disse assim:
– Me empurra!
A avó, sem demonstrar desdém ou qualquer sinal de desrespeito, corrigiu a neta:
– Não é "me empurra", e sim "empurra-me": "me empurra" é no Brasil; cá falamos "empurra-me".
Esse diálogo prova duas coisas:
1. Qualquer falante lusófono (brasileiro, português, angolano etc.) entende perfeitamente «me empurra» ou «empurra-me» no contexto mencionado.
2. Cada grupo de pessoas duma região fala de modo diferente: ou «me empurra», ou «empurra-me».
Logo, tanto «me empurra» quanto «empurra-me» são possibilidades gramaticais da mesma língua: a língua portuguesa.
A primeira frase reflete a norma linguística brasileira, em sua modalidade falada. A segunda frase reflete a norma linguística lusitana. Mas ambas as frases fazem parte do que o linguista Eugenio Coseriu chama de sistema.
A grande questão, portanto, é a seguinte: existem dois conceitos a ser bem compreendidos: sistema e norma.
O sistema é o conjunto de todas as possibilidades que uma língua tem. Já a norma é um conjunto de fatos linguísticos em comum empregados por uma comunidade de usuários da língua.
Então, as normas A, B, C, X, Y, Z existem porque o sistema existe. Ficou claro?
O fato de a norma brasileira ser diferente da norma lusitana não implica serem diferentes línguas. Implica que determinados usos de uma norma ou de outra são diferentes entre si, por razões óbvias: se o sistema possibilita uma série de usos, e um desses usos ganha mais adesão do que outro, ou do que outros, deste lado do Atlântico ou do outro lado do Atlântico, isso não significa que as línguas sejam diferentes, que os sistemas sejam distintos, e sim que as normas são distintas — o mesmo ocorre entre diferentes países de língua inglesa, ou espanhola, ou francesa, ou árabe, ou russa...
Se o português europeu (PE) e o português brasileiro (PB) fossem línguas diferentes, os brasileiros que vão para Portugal não conseguiriam se comunicar com os portugueses, nem sequer conseguiriam trabalhar diretamente com o público nas dezenas de serviços que Portugal oferece aos brasileiros, como telemarketing, vendas, recepção – ou em qualquer outro país de língua portuguesa.
Ninguém tem de fazer curso de Português para residir, trabalhar e interagir em Portugal, e o contrário também é verdadeiro – desde sempre (hoje há cerca de 140 mil portugueses a viver no Brasil).
Para que uma língua seja uma língua, precisa apresentar um sistema distinto de outro, a ponto de você ter necessidade de, em termos práticos, ter aulas daquele idioma para que entenda o seu sistema, a fim de então ser capaz de usar o modelo linguístico padronizado daquele sistema, isto é, a norma-padrão (supradialetal, standard). Aí depois, com o tempo, vivendo em outro país cuja língua seja a mesma que a sua, como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Portugal, Brasil, você vai absorvendo a norma daquele local, do ponto de vista fonético, morfológico, sintático, semântico, léxico, etc.
Desse modo, voltando à portuguesinha que usou a próclise em início de oração e, de vez em quando, deve usar um léxico diferente do seu país de origem – provavelmente por influência do constante contato linguístico com os vídeos de brasileiros no YouTube e no TikTok –, é preciso dizer que tal fato é tão somente uma aproximação de normas, e não uma distinção de sistemas.
Todavia, como a norma linguística promove a coesão dum povo, sua avó (patriótica) fez questão de marcar qual norma é a do seu povo – certamente uma avó brasileira (patriótica) faria o mesmo com a sua netinha se esta fosse bombardeada por youtubers portugueses falando com o sotaque lusitano: «Meu amor, aqui no Brasil a gente fala banheiro, e não casa de banho, tá?»
É isso. Iguais, mas diferentes. Diferentes, mas iguais – às vezes mais, às vezes menos.
Ah! Antes de eu me despedir, leia esta reflexão feita pelo filólogo Gladstone Chaves de Melo em seu livro A língua do Brasil, recomendadíssimo a quem quiser ampliar a discussão a respeito desse tema:
«... porque, se é verdade que o aspecto linguístico português não é inteiramente o mesmo que o brasileiro, é verdade também que a língua do Brasil não é sempre igual em toda a parte. O dialeto do Nordeste não é o mesmo do Rio de Janeiro. A diferença é tão palpável que qualquer pessoa de ouvido sensível e espírito de observação identifica um nordestino num "boa-tarde". Outro tanto se diga do falar paulista, do sulista, do caipira etc. Uma vez que há variedade nos falares brasileiros, qual dos nossos modismos regionais deve ser a "língua brasileira"?» (p. 38-39)
...................................
Curiosidade: muitas das construções chamadas de brasileirismos não passam de arcaísmos lusitanos preservados em nossa história, ou seja, muito do que hoje é "brasileiro" não passa de lusitanismo preservado ao longo dos séculos. Num estudo feito pela linguista Dinah Callou, a anteposição do pronome ao verbo no percurso histórico em textos não literários mostra que, do século XIII ao século XVI, houve uma curva ascendente de 0 a 100% e uma curva descendente de 100% a 0% do século XVI ao século XIX, ou seja: a colocação pronominal do português lusitano já oscilou de ênclise para próclise e de próclise para ênclise. Não sabemos o que o futuro nos reserva.
Apontamento do professor de português brasileiro Fernando Pestana publicado na sua página pessoal do Faebbook