A vida contemporânea é marcada pelo movimento acelerado de mudanças em todos os âmbitos da vida social, assim como as sociedades em que habitamos são cada vez mais complexas, multiculturais e multilíngues. As fronteiras entre as nações e continentes tornaram-se fluidas, especialmente com o advento da Internet e das trocas e trânsitos intensos de informações proporcionadas pelas tecnologias digitais. Além disso, os movimentos de migração em todo o globo hibridizam povos, culturas e línguas, alterando as formas tradicionais de se compreender a interação entre os sujeitos e o mundo.
No campo da pesquisa em linguagem, cada vez mais especialistas vêm-se dedicando ao estudo das variadas formas de interação entre as pessoas, em diferentes esferas de comunicação, em ambientes físicos e digitais. Nesse contexto, o conceito da translinguagem, oriundo do inglês translanguaging, ajuda-nos a compreender as práticas de linguagem e os modos como os sujeitos contemporâneos transitam entre línguas, construindo seus repertórios linguísticos de acordo com seus interesses de comunicação e de representação no mundo. Assim, a translinguagem não significa apenas o contato ou a alternância entre línguas, mas a estratégia de interação de sujeitos bi/multilíngues, que selecionam e combinam recursos de seus repertórios linguísticos para se comunicar.
Nesta semana [entre 12 e 18/12/2021], participei de uma sessão de defesa de tese de doutorado1 na qual um jovem pesquisador explorou o conceito de translinguagem para compreender as interações entre sujeitos multilíngues através das redes sociais, como o Facebook. Entre os exemplos, ele mostrou como um jovem nigeriano mesclava inglês, iorubá e pidgin e um outro, oriundo de Blangladesh, alternava o bengali e o inglês para atingirem os seus objetivos comunicativos. O trabalho também ressaltou o potencial desse conceito para interpretarmos variados fenômenos de trânsito entre linguagens no mundo contemporâneo, inclusive entre normas de uma mesma língua. Lembrei-me, então, que um dos meus alunos trouxe para a aula de estágio de português língua estrangeira um post que ele havia copiado de uma rede social e que mostrava a interação entre jovens brasileiros, guineenses e angolanos. Eles brincavam de “translinguar” entre as normas do português, já que os jovens africanos estudam no momento no Brasil. Um deles disse que «quando como muamba de galinha, estou a comer muamba, mas quando como feijão, arroz e bife, estou comendo com sabor de Brasil».
Aproveitei para discutir com a turma o fato de que as variedades do português, especialmente do Brasil e dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), são marcadas por processos diversos de “translinguajamento”. O diálogo entre o português e as centenas de línguas que com ele estiveram em contato, ao longo dos séculos, provocou as mais diversas trocas linguísticas e culturais e permitiram a construção de variadas estratégias de comunicação de seus povos. Se pensarmos bem, talvez a língua do futuro seja a translinguagem!
1 SANTO, Diogo Oliveira Espírito. A translinguagem entre o fixo e o fluido das performances identitárias no Facebook. Tese de doutorado. Universidade Federal da Bahia, dezembro 2021.
[AUDIO: Translinguagem _Edleise]
Crónica da autrora emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 19 de dezembro de 2021.