Será discriminatório dizer a presidente, passando a ser obrigatório a presidenta? Há quem adore os debates «de género». Eu acho alguma graça, mas recomendo calma.
Como se diria em termos queirosianos, «ele há muitas questões». Aquelas sobre as quais ninguém nos pediu opinião costumam ser aliciantes. «A questão do género feminino de palavras denominadoras de cargos políticos» (Público, 1-11-2005) é o género de «questões» a que dificilmente resisto. Publicou esse diário, sob o título «Formação do feminino de cargos políticos lança controvérsia linguística» (o texto principal é assinado por Joana Carreira Seabra), uma página dedicada ao problema. Ou antes, ao que não julgava ser um problema, mas que, dados os casos e os nomes invocados, passa a ser. Ah, que saudades eu tinha de uma controvérsia linguística! As desencontradas opiniões que ali se reflectem são das que dão a tentação de deixar tudo como está, em vez de chamar presidenta ao presidente do sexo feminino ou comandanta à mulher que comanda. Mas os exemplos e os argumentos fluem e contrapõem-se, e um homem, ou uma mulher, é incitado/a ao debate. Quando leio que, se foi aceite ministra como feminino de ministro (e nunca tive a menor objecção a isso), temos de procurar o feminino de todos os outros cargos, começo a ficar apreensivo.
Estas discussões terminológicas, relacionadas com o novo quadro de identidades socioprofissionais e os estudos de sociologia do género, têm na base a presunção (fundada, em muitos casos) de que o acesso das mulheres a profissões, ofícios e cargos tradicionalmente reservados aos homens impõe que, ao serem abertos às mulheres, devem adoptar formas univocamente femininas ou masculinas, ou sem conotação sexista. O princípio do gender mainstreaming, que consta de documentos oficiais da ONU e da UE, pretende a harmonização da terminologia com o princípio da igualdade entre os sexos em assuntos de emprego, contrariando a discriminação de funções e papéis sociais assente na diferença sexual ou de «género». Isto não me parece polémico. Se, ao chamar o canalizador (que em Portugal, como se sabe, dificilmente aparece), aparecer uma canalizadora, não há sequer um grande esforço terminológico (como não há para professor/professora). Se ao chamar um táxi vir que é guiado por uma senhora, também não. Mas neste caso, em que o taxista e a taxista (ou o motorista e a motorista) não requerem mais do que a mudança no artigo, o mesmo acontecendo com electricista, pianista, jornalista, dentista, telefonista, etc., lá se vai a controvérsia. Onde é que ela então surge? Surge quando se pensa que uma palavra, lá por ser tradicionalmente referida a homens, deixa por isso de aplicar-se a mulheres. Por exemplo, presidente serve para ambos os sexos, ou géneros. Não tem sentido restringi-la a homens, inventando presidenta. Seria o mesmo que dizer «o João, residente em Lisboa, e a Joana, residenta no Porto». Ou seja, uma tolice.
Permito-me, como viram, alargar o debate proposto no Público a cargos, funções ou ofícios não exclusivamente políticos. A política não impõe uma problemática terminológica própria; pelo menos neste campo não dita regras à linguística. Alguns pruridos vêm de se supor que o facto de uma palavra acabar em o ou a lhe determina o género. Ora isso é apenas uma tendência (ou frequência) em certos tipos de substantivos e adjectivos de algumas línguas latinas: operária/operário, advogada/advogado, médica/médico. Mas basta uma lista como a dos ofícios acabados em ista para desfazer a ilusão. Monarca, autarca, poeta, profeta, estafeta não remetem para o género feminino (nem para o masculino). Acontece apenas que para alguns termos se criou um feminino (papisa, poetisa, sacerdotisa), de que se gosta ou não. É aliás curioso observar que a rejeição do termo de conotação masculina (como o juiz e a juíza, enquanto em espanhol se diz la juez, mudando apenas o artigo, ou o ministro e a ministra) coexiste com o fenómeno inverso de a poetisa preferir ser a poeta, renunciando aqui à especificidade de género. O mesmo se poderá vir a passar com a maestrina, quando entender o termo como depreciativo e quiser ser a maestra, ou até a maestro. Assim, os homens que tiverem profissões cuja designação acaba em a não devem pensar que têm ofícios efeminados, devendo passar a ser electricistos ou jornalistos. De um modo geral, este debate deve ater-se à natureza das palavras (que passa pela etimologia e pelo significado) e não à sua terminação.
Na linha da ainda virtual palavra presidenta existem, todavia, outras que não parece necessário adoptar. É o caso de governante, que serve para os dois géneros, embora popularmente se possa ouvir a governanta ou a chefa. Seria como dizer o amante e a amanta, ou o príncipe reinante e a princesa reinanta; puro disparate. Também não julgo adequado (refiro-me à terminologia oficial e não à linguagem popular) dizer generala, majora ou oficiala. Oficial e militar não são masculinos nem femininos; são invariáveis em género, podendo-se dizer «esta militar da Força Aérea», ou «a oficial de diligências». Entrou no hábito «a madre superiora», quando o a final é dispensável ou tão errado como em inferiora.
Caso mais difícil, por ter entrado nos costumes, é o do embaixador e da embaixatriz. Não há dúvida de que são formas masculina e feminina de um nome. Aqui, porém, a especialização (ou discriminação) social deixou marcas. Como a missão de embaixador era reservada a homens, passou a chamar-se, social e protocolarmente, embaixatriz à mulher do embaixador. Hoje isso não se justifica, pois uma mulher pode ser embaixatriz (titular, entenda-se, e não cônjuge) e nem por isso vão chamar embaixador ao marido. Os «espertos» acharam, porém, que se devia inventar embaixadora para um embaixador de sexo feminino. Não lhes ocorreu a analogia com imperador e imperatriz; esta pode ser a «consorte» do imperador ou a titular do cargo. É uma improbabilidade estatística, mas não uma impossibilidade linguística. Sempre se disse «a Rainha Vitória, Imperatriz da Índia» (ou das Índias) e não «imperadora da Índia». Agora é difícil corrigir aquele erro, mas conviria pensar nisso, pois a carreira diplomática vai-se abrindo às senhoras, e um dia, quem sabe, mesmo o monarca japonês poderá ser uma mulher.
in Expresso, 12 de Novembro de 2005