«[...] Confrange-me continuar a ter, no ensino superior, quem ache que a formação de professores de línguas não é um investimento suficientemente lucrativo, nem "nobre", nem "cientificamente interessante" [...]»
Fez, a 11 de março, 41 anos que comecei a trabalhar como professora eventual, no então Liceu Gil Vicente, em Lisboa. Era 1981, eu tinha 20 anos e estava no 2.º ano da faculdade. Por muito boa vontade que tivesse, a maturidade e os conhecimentos científicos não eram abundantes e ainda menos os de pedagogia e didática.
Os tempos eram outros. Com o boom educativo em Portugal após 1974, o sistema rebentava pelas costuras. As escolas-pavilhões-pré-fabricados-com-telhados-de-amianto pontuavam a paisagem de cidades e respetivas periferias. Os professores com habilitação própria eram poucos, os detentores de habilitação profissional eram raros e, mesmo contando com os apenas suficientemente habilitados, não havia docentes suficientes para responder a tanta demanda. Entravam todos os candidatos e nunca eram demais, estivessem mais ou menos motivados ou preparados. Claro que toda esta situação deixou marcas indeléveis no sistema educativo, provocou muitas dores de crescimento, mas ainda assim foi a única forma de este país sacudir o comum atavismo e sair do fosso de analfabetismo e iliteracia onde sempre vivera.
Ao longo da minha carreira, anos houve em que colaborei na formação inicial de professores, na faculdade. Nesses anos, encontrei candidatos a professores de Português muito bem preparados e motivados, que sonhavam passar o resto da sua vida profissional a ensinar. Infelizmente, muitos desistiram de o fazer, porque a sociedade e sucessivos governantes os foram escorraçando, ora destruindo a frágil carreira que tinham e aviltando-os aos olhos da opinião pública (anos 2000), quer aconselhando-os a emigrar, alegadamente por não serem precisos e sobrecarregarem o erário público (anos 2010). A formação destes professores custou muito dinheiro a eles mesmos e às suas famílias e também aos contribuintes; escorraçá-los, longe de ter trazido qualquer espécie de enriquecimento ao país, constituiu, sim, um despilfarro do dinheiro público e dos nossos recursos mais preciosos, os humanos, que afinal são imprescindíveis, como agora se comprova. 41 anos depois de ter começado a ensinar e esperando-me mais alguns até poder aposentar-me, ouço com indignação as propostas de manter professores no ativo por mais tempo do que o devido, ainda que com horários reduzidos, para fazer face às carências do sistema.
A guerra na Ucrânia, os seus horrores e consequências, têm tornado a nossa comunicação social «monotemática», na expressão de Catarina Demony, no passado sábado, no Mundo sem Muros (RTP3). Embora a falta de professores do ensino básico e secundário, de que tanto se falava até meados de fevereiro, tenha aparentemente ficado longe das preocupações públicas, ela continua a existir e preocupa-me saber onde estarão todos os professores de Português de que precisaremos para o ensinar aos refugiados que acolhemos. Esta situação preocupa-me por continuar a não ver valorização social (nem pecuniária, já agora) dos professores, nomeadamente os do básico e secundário, segregando-se os melhores e mais preparados. Confrange-me continuar a ter, no ensino superior, quem ache que a formação de professores de línguas não é um investimento suficientemente lucrativo, nem «nobre», nem «cientificamente interessante» quem ache que o português bom é só o das elites (e esse bebe-se no leite materno), quem desvalorize o papel social das universidades. A quem interessa isto?
A educação é alicerce do mundo que queremos e julgávamos conquistado. Quando a valorizaremos devidamente?
Artigo da linguista e professora univesitária portuguesa Margarita Correia, publicado no Diário de Notícias, em 14 de março de 2022.