«Quando pronunciamos a palavra propaganda, associamo-la à Rússia, e no entanto…; quando usamos o termo espionagem, vinculamo-lo à Rússia, e no entanto…; quando falamos no processo de influir na política interna de países soberanos, associamo-lo à Rússia, e no entanto…»
Não sei. E tenho muitas dúvidas. A peculiaridade da sociedade actual é que estabelece dogmas inquestionáveis sobre incertezas extremas, porque responde em obediência absoluta às consciências nacionais e à consciência europeia. Na época que atravessamos, não entrar na política é coisa impensável. Szymborska dizia que tudo é político («Todas as tuas, nossas, vossas/ questões diárias, questões nocturnas/ são questões políticas» – Paisagem com grão de areia, Relógio D’Água). O que acontece com a retórica política é que ela tende a criar certezas insofismáveis, mesmo no quadro da sua natureza calculista. Ora, a pior coisa que se pode fazer com as ideias é rendermo-nos a elas e não exprimirmos as dúvidas acerca do seu efeito e da sua génese.
Um militar português, habituado a comentários estandardizados, segundo as regras da massificação da opinião pública, referiu-se recentemente a esta guerra (na Ucrânia) como o confronto entre a democracia e a autocracia. Encontramos corroborações desta afirmação por todo o lado (com excepção, curiosamente, entre alguns outros militares portugueses), sobretudo nos meios de comunicação ocidentais. Note-se, por exemplo, que alguns militares ucranianos foram já mais longe: trata-se de uma guerra entre o bem e o mal, afirmam. Mas o que é isso do bem? E quem pode reclamá-lo como seu? Ao contrário do discurso polifónico, estamos, neste contexto, perante a retórica linear, no caso a evidência sociopolítica da ignomínia russa. Perante este estreitamento da visão, é seguramente desnecessário fazer um comentário exaustivo. Será suficiente se dissermos não haver senão duas faces iguais da mesma moeda.
Como vários autores observam, o latim deixou de ser, há alguns séculos, a língua de uma alta intelligentsia pan-europeia. Em suma, a queda do latim deu origem a um processo de integração e paridade das línguas vernáculas nacionais no espaço europeu que, nas últimas décadas, tem sido territorializado pela expansão da língua franca do preeminente império mundial. Num encontro em 2014, na Casa Branca, entre José Mujica e Barack Obama, o ex-presidente uruguaio, ironizando, foi claro como água: «E vivemos numa época em que temos de aprender inglês. Sim ou sim? E vocês [os latino-americanos] têm de tornar-se um país bilingue. Sim ou sim?» É na nova língua sagrada que os jovens portugueses exprimem o seu universo imaginado.
A colonização do mundo pelo Império não chegou com a Coca-Cola, com o pretensiosismo de Hollywood, com o cabotinismo dos intervalos do Super Bowl e da NBA, nem com a McDonalds e seu séquito de basbaques, e muito menos com a animação anti-soviética da Disney, na forma de rato. Para o que nos interessa aqui, basta referir que começou antes da II Guerra Mundial, tornando-se sistemática durante o período da guerra fria. É desse tempo a Operação Condor, que depôs as frágeis democracias latino-americanas e acoitou ditaduras de direita, instaurando, por transferência de regimes, o “sistema integrado” de ditaduras do Cone Sul: Brasil, 1964 – os jornais norte-americanos (estado-unidenses é o termo adequado) chegaram mesmo a anunciar o golpe, ainda antes de ele ter acontecido; Chile, 1973 (com tentativa gorada uns meses antes); Uruguai, 1974; Argentina, com a Triple A, organização terrorista apoiada pela CIA, a que se seguiu o respectivo golpe de 1974; etc., etc. (há literatura suficiente, ao dispor de quem queira perceber o que foi a política externa do Tio Sam). Na altura, corria no Uruguai a piada de que nos EUA não havia golpes de estado, porque não tinham embaixada americana.
Na Europa, o Império não foi menos brando: a operação Gladio, orquestrada pela Western Union, NATO e CIA, manipulou as mais variadas “democracias” europeias, entre as quais a nossa («Provavelmente, temos que atacar Portugal, qualquer que seja o resultado, e expulsá-lo da NATO», advertiu o velho Henry Kissinger, in illo tempore), empregou práticas de pressão com agentes infiltrados (em muitos casos, nas universidades), usou a técnica das bandeiras falsas para denegrir o activismo de esquerda, sabotou os regimes e “convidou-os a aderir” a concepções políticas pró-americanas ou, no mínimo, anticomunistas. Se isto não nos nos faz recordar factos ocorridos num certo país europeu em 2014, andamos, de facto, privados de pensamento.
O enigmático exército secreto da NATO, criado imediatamente a seguir à II Guerra Mundial, em parceria com os serviços secretos nazis, tem merecido a atenção de alguns investigadores e é o exemplo de como os sistemas políticos têm sido concebidos pela via do secretismo.
Finalmente, perguntamo-nos: é destes tipos que gostamos? Os meios de comunicação de massas, o cinema, a produção musical, a moda, enfim, toda esta cultura do mercado nos assegura que sim. Não sei. Tenho muitas dúvidas. Não me parece que a reputação dos russos tenha muito a perder, se comparada à do Império. No sistema de equivalências, quando pronunciamos a palavra “propaganda”, associamo-la à Rússia, e no entanto…; quando usamos o termo “espionagem”, vinculamo-lo à Rússia, e no entanto…; quando falamos no processo de influir na política interna de países soberanos, associamo-lo à Rússia, e no entanto…
Note-se: tenho por sectores culturais estado-unidenses, da mais variada espécie, um carinho indisfarçável e não quero que o amor à cultura russa mo subtraia. Do mesmo modo que não há-de ser uma entidade nacional e sociológica que ofuscará a realidade sólida e estável da outra. A ideia de um mundo sem uma concepção de simultaneidade e coexistência, fracturado pelo terror hegemónico do dólar e pela sobrevivência desesperada do rublo, pela expulsão da Rússia da Europa, em grande medida através da obscuridade do sotaque inglês de Washington, causa-me náuseas. Será possível evitar uma certa sensação de absurdo, como a de que a afinidade dos EUA à Europa não é de modo algum fortuita? Será possível continuar a escrever em jornais para públicos de “leitura” poliglota e polifónica, mesmo sabendo que por detrás da imprensa há grupos económicos conotados com regimes e visões ideológicas do mundo? Isto porque, como explicou Benedict Anderson, «o capitalismo, por maiores que sejam as façanhas de que é capaz, encontrou na morte e nas línguas dois tenazes adversários». Não, não tem nada que ver com bem e mal, democracia e autocracia. Essa, sim, é propaganda barata.
Artigo de opinião incluído no jornal Público em 30 de maio de 2022.