Com os tambores a rufar no Leste do [continente europeu], façamos uma pequena viagem no tempo, em busca da origem da palavra guerra.
Uma palavra germânica
A palavra portuguesa tem origem imediata no latim — não o latim clássico, mas sim o latim medieval. Os falantes dos vários romances, a certa altura, importaram a palavra *werru do antigo frâncico, a língua germânica da dinastia merovíngia dos Francos, que também foi importada para o latim medieval da escrita, onde aparece como werra.
As palavras que os vários falares latinos importaram das línguas germânicas sofreram transformações. Uma das mudanças típicas era a transformação do som /w/ inicial em /g/. Foi o que aconteceu, por exemplo, em português, com a nossa guerra, que tem origem na *werru germânica.
Houve, no entanto, uma excepção: nos falares do Norte da França, as palavras germânicas eram importadas sem essa transformação. O francês normando, por exemplo, importou *werru como werre (e não guerre, como nos falares que deram origem ao padrão do francês actual).
Os normandos, como se sabe, plantaram muitas palavras no inglês. Foi o que aconteceu à tal werre, que se transformou em war. Sim, não parece, mas guerra e war têm uma história muito parecida. Temos uma palavra germânica importada para uma língua latina que, por sua vez, a exportou para outra língua germânica (o inglês).
Guerra de palavras
O latim clássico já tinha uma palavra para guerra: bellum. Ao longo da história, essa antiga palavra foi reutilizada para criar palavras como bélico ou beligerante. Por que razão preferimos, para o termo principal, a importação guerra?
Os germânicos transformaram-se, depois do fim do Império do Ocidente, na nova elite militar. Não é de estranhar que algumas palavras tivessem entrado na língua da população — ainda por cima uma palavra tão militar.
A palavra bellum, com as transformações típicas das várias línguas latinas, também iria acabar com uma forma demasiado semelhante (ou igual) a belo… Dê por onde der, na guerra entre estas duas palavras latinas (a velha bellum ou a mais recente guerra), ganhou a palavra vinda do Norte.
Uma vez dentro das línguas latinas, cada uma delas usou a palavra para criar mais palavras, de várias classes: em português, criámos nomes (guerreiro), verbos (guerrear), adjectivos (aguerrido), advérbios (aguerridamente)… A palavra também é usada metaforicamente com frequência — basta pensar na guerra contra uma qualquer doença.
Guerras e confusões
Fim da história? Ainda não. Podemos continuar a viajar no tempo: a palavra germânica que foi emprestada ao latim medieval tem origem na raiz proto-indo-europeia *wers-. (O asterisco na palavra indica ser uma forma reconstruída pelos linguistas.) Essa palavra, com menos saltos, deu também origem à palavra latina verrō, que nos deu varrer.
Como é que guerra e varrer têm a mesma origem, mas significados tão diferentes? A raiz *wers- significava algo como «arrastar», «limpar», «malhar» ou «debulhar». O percurso até varrer não é difícil de entender. Já a palavra germânica com a mesma origem (e que veio a dar à nossa guerra) herdou apenas o significado de «malhar» ou «debulhar», dando depois um pequeno salto metafórico para «criar confusão» (a confusão do chão depois da debulha).
Confusão: daí terá vindo *warru e, depois, guerra — estamos, de facto, a viver dias confusos.
Na imagem à direita, guerreiros francos. Fonte: "The Frankish way of war" in Weapons and Warfare. History and Hardware of Warfare (consulta em 17/02/2022).
Apontamento do autor no seu blogue Certas Palavras, em 13 de fevereiro de 2022.