«Não raramente, deparo com o enfadonho abuso do pronome demonstrativo isso: um tanto em obras amadoras de língua portuguesa e outro tanto maior em traduções cruas do inglês.»
Quem quer que tenha acompanhado o Chaves na tevê – esse clássico da comédia que se encerrou em 1980, mas ainda hoje é transmitido no Brasil – pode lembrar-se de uma das tantas manias do protagonista: o repetitivo «Isso, isso, isso!».
Bem, se o personagem de Roberto Bolaños já se incorporou ao imaginário do povo brasileiro, não se pode dizer menos do cacoete que lhe dava graça – sestro que, infelizmente, parece ter encontrado imitação no ofício de nossos maus autores e tradutores.
Explico-me: não raramente, deparo com o enfadonho abuso do pronome demonstrativo “isso”: um tanto em obras amadoras de língua portuguesa e outro tanto maior em traduções cruas do inglês. Neste último caso, se o tradutor não tem intimidade com a língua materna, cada it converte-se em isso, e cada parágrafo é uma tortura a quem lê.
Digo-o porque recentemente, em minhas revisões, fui assombrado com uma tradução de cinquenta páginas de arquivo de texto em que pude somar nada menos que duzentos e vinte e sete issos. Uma média de quase cinco por página. Foram construções como «Eu não disse isso», «Grato por isso», «Sou incapaz disso», «Ele percebeu isso», «Sei disso»,«Depois disso», «Com relação a isso», etc., etc., etc. Houve parágrafos (o ápice da agonia) em que me perfuraram os olhos quatro ocorrências do pronome em pouquíssimas linhas.
Não estou aqui, porém, para chorar os issos derramados. O que desejo é anunciar, rememorar que há uma porção de pronomes demonstrativos que podem, com toda a elegância do mundo, fazer as vezes do desgastado isso e dos irmãos esse, essa, isto, este, esta (com algum grau de adequação de adequação da sentença, é claro): mesmo, tal, o, semelhante, próprio. Demais, há vários outros modos de construir uma frase, os quais se limitam apenas à criatividade e à liberdade do autor ou tradutor.
Por exemplo, em «Eu não menti. Jamais faria isso!», contamos em bom português com pelo menos cinco maneiras de escrevê-lo: «Eu não menti. Jamais o faria!»; «Jamais faria tal!»; «Jamais faria tal coisa!»; «Jamais faria assim!»; «Jamais!». É óbvio que, a depender da construção, há certa diferença de vigor ou de intenção; mas temos aí, em princípio, cinco alternativas ao carcomido pronome.
Em «Grato por isso», conforme nos permita o contexto, as opções são ainda mais amplas: «Grato por tal»; «Grato pelo que fizeste»; «Grato pelo favor»; «Grato pela ajuda»; «Grato pelo auxílio»; «Grato pela gentileza»; «Grato pelo socorro»; «Grato»… E em lugar de «Depois disso»? Dispomos da multiplicidade de ferramentas temporais: «Depois do fato»; «Depois»; «Na sequência»; «Em seguida»; «A seguir»; «Ato contínuo»; «Sem demora»…
Como se vê, o demonstrativo isso não é o único recurso. Há substitutos mais robustos e menos vagos; vocábulos e expressões que imprimem cor à prosa. Não nos faltam excelentes exemplos:
1. «Tal é o rio; tal a sua história: revolta, desordenada, incompleta.» (Euclides da Cunha)
(Quão mais forte do que «Esse é o rio; essa a sua história»!)
2. «E já o disse: o Evangelho de que era ministro, não o compreendia nem o sentia…» (Almeida Garrett)
(«E já disse isto: o Evangelho…» — construção sensabor, não?)
3. «…Jefté, com maior razão ainda, podia duvidar se o voto naquele caso obrigava, não sendo tal a sua tenção, nem lhe tendo vindo tal coisa ao pensamento…» (Padre Antônio Vieira)
(Um simples essa ou isso em lugar de tal e «tal coisa» empobreceria todo o sermão do imperador de nossa língua.)
4. «A quatragem é a dança pitoresca dos nossos camponeses, dança favorita do roceiro em seus dias de festa […]. Como o próprio nome indica, forma-se de um grupo de quatro pessoas.» (Bernardo Guimarães)
(Esvaída estaria toda a energia da frase se achássemos «Como esse nome indica» em lugar de «o próprio nome».)
Não basta, pois, escrever corretamente; não basta o respeito à norma culta. Nada há que objetar, em termos de gramática, ao emprego de “isso” nos exemplos ora vistos. Mas só gramática não torna agradável qualquer discurso; aí entra o estilo.
Antoine Albalat, em A arte de escrever ensinada em 20 lições (tradução de Cândido de Figueiredo), bem nos alerta: «Empregar muitas palavras é um defeito grave; mas repetir canhestramente as mesmas palavras é enfraquecer o estilo de outra maneira; contra isto, devemos ser implacáveis. Nada revela tanto a pobreza de imaginação e nada fatiga tão depressa o leitor; dedicai ao caso a maior atenção, pois é fácil deixar passar uma expressão já empregada, ou muito parecida, sem que se veja.»
Em tudo na vida se pede equilíbrio. A profusão de pronomes e de tantos outros modos de dizer no repertório da língua portuguesa é meio para refrescar o texto, para arejá-lo de uma linha a outra e trazer matizes que quebrem o preto da tinta no branco papel. Os mestres das letras deixaram-nos um legado vivaz com que podemos aprender.
Se escrever é arte, então a beleza importa – e a monotonia a todos aborrece. Lembremo-nos sempre… disso.
Artigo publicado no mural do Facebook de Língua e Tradição no dia 23 de abril de 2021.