1. São dias que hão de com certeza ficar profundamente gravados na memória coletiva mundial. Com o alastramento do novo coronavírus (SARS-CoV-2), e tal como acontece noutros países, em especial na vizinha Espanha, também Portugal se encontra prestes a adotar medidas de exceção com forte impacto linguístico, testemunhado pela velocidade com que entram em circulação palavras menos habituais ou neologismos simples e compostos. Do vocabulário recorrente, destaca-se a locução estado de emergência, uma medida controversa que está prevista pela Constituição da República Portuguesa e suspende direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, embora sujeita ao respeito do princípio da proporcionalidade e limitada ao «estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional» (art.º 19.º n.º4 da Constituição portuguesa. Cf. Público, 16/03/2020 + RTP Notícias, 17/03/2020); e, ainda, o artigo do jornalista Ferreira Fernandes, Portugueses declaram estado de resistência). Mas outros termos se repetem com os conceitos associados (às vezes muito técnicos) no discurso mediático, permitindo elaborar uma pequena lista não exaustiva, com breves referências aos contextos de cada um deles:
– Declaração de requisição civil: expressão novamente usada em Portugal em referência à forma de travar a greve dos estivadores do porto de Lisboa, ativa apesar da situação de pandemia (ler aqui) e que o Decreto-Lei 637/74 define como «o conjunto de medidas determinadas pelo Governo necessárias para, em circunstâncias particularmente graves, se assegurar o regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público ou de sectores vitais da economia nacional». Em 2019, a expressão apareceu com alguma frequência nos media portugueses, sobretudo a respeito de duas greves então realizadas: a dos enfermeiros e a dos motoristas de matérias perigosas (ler mais num artigo do jornal Sol, 07/02/2019).
– Distância social, distanciamento social: denomina a necessidade ou o dever de cada indivíduo de manter certo afastamento em relação a outros, de modo a evitar o contágio (na imagem, o cartune Bartoon de Luís Afonso, em alusão humorística a este imperativo – jornal Público, 17/03/2020).
– Disciplina social: outra expressão que se torna recorrente no discurso, para frisar a responsabilidade que cabe a cada um na tomada de precauções contra a propagação do vírus.
– Estado de calamidade pública: conforme se escreve num artigo do jornal Observador (17/03/2020), «[d]e acordo com a Lei de Bases da Proteção Civil, o estado de calamidade é declarado pelo Governo, após resolução do Conselho de Ministros»; pode «ser antecipado por um “despacho de urgência” conjunto do primeiro-ministro e da ministra da Administração Interna». É a situação decretada a partir de 17/03/2020 na cidade portuguesa de Ovar (distrito de Aveiro) por causa da infeção do coronavírus.
– Ensino a distância: em Portugal, com as aulas presenciais suspensas, o ensino universitário e não universitário recorre ao ensino à distância, como forma de contornar a crise. Há escolas ainda abertas para garantir refeições ou para filhos de pessoas cuja atividade exige presença no local habitual de trabalho, como acontece com os profissionais de saúde, embora não sejam numerosas (cf. TVI 24). Entretanto, apesar dos esforços para reforçar e melhorar os meios de ensino à distância, o ano letivo de 2019/2020 parece comprometido, falando-se na eventual suspensão de exames e estágios, visto estes coincidirem com o pico previsível do surto viral. Mesmo assim, novas regras permitem fazer em linha as inscrições nos exames e provas nacionais, tendo o Ministério da Educação também alargado o prazo até 3 de abril (ler notícia no jornal Observador, 17/03/2020).
– Isolamento: recomenda-se ou impõe-se o recolhimento em casa e, havendo suspeitas ou confirmação de o vírus ter sido contraído, deve-se não contactar com ninguém. A etimologia deste termo foi abordada pelo professor universitário, tradutor e divulgador Marco Neves num texto igualmente divulgado nas páginas do Ciberdúvidas (ler aqui).
– Internação: palavra modificada por vezes pelo adjetivo compulsória – «internação compulsória». É a forma empregada no Brasil; em Portugal, usa-se geralmente internamento.
– Mapa pandémico: A que países já chegou o coronavírus?
– Quarentena: costumava significar «período de 40 adias», mas com a presente crise tornou-se sinónimo de «período de isolamento», o que quer dizer que pode não ter a duração do referido intervalo. Sobre a situação na França, ler aqui . A respeito das medidas que se aplicam ou se discutem no Brasil, ler aqui e aqui.
– Teletrabalho: o trabalho feito a distância que os atuais meios eletrónicos e digitais proporcionam. Ver mais acima Ensino a distância.
Na imagem à esquerda, cartune da série Bartoon, de Luís Afonso (Público, 18/03/2020).
2. No Consultório, quatro novas perguntas: a locução latina de cujus; as construções «enquanto crianças» e e«em crianças»; a análise sintática de uma frase de Camilo Castelo Branco; e a ordem interna a que pode obedecer em português uma sequência de adjetivos.
3. O sal costuma prestar-se a metáforas, para sugerir aquilo que pode dar graça à vida, desde que não caia em excessos. A propósito da família de palavras de sal, o professor João Nogueira da Costa apresenta, na rubrica O nosso idioma, uma nova lista definida pela escala que vai do salgado ao insonso.
4. Como foi dito, as medidas de confinamento aconselhado ou imposto pelos governos levam a suspender as aulas presenciais, mas o mundo do ensino a distância move-se e testa os seus limites. Tal é o contexto do desafio que o professor e classicista português Frederico Lourenço propõe: aulas de latim a partir do zero na página de Facebook que criou para efeito. Material de apoio; o livro da sua autoria a Nova Gramática do Latim, publicada em 2019 (ver Montra de Livros).
5. As medidas de exceção alteram o nosso quotidiano, é verdade, mas reconheça-se que, mesmo sem teletrabalho, são muitas as opções para manter o espírito vivo e curioso, pondo-o em contacto com o mundo da cultura. Algumas sugestões com origem em Portugal:
– neste dia, pelas 19h00, a inauguração virtual em linha da exposição Julian Opie. Obras inéditas, no Museu Coleção Berardo;
– os projetos A Música Portuguesa a Gravar-se a ela própria, e A Dança Portuguesa a Gostar de si própria, desenvolvidos no âmbito das atividades de A Música Portuguesa a Gostar dela própria, do realizador-musicólogo Tiago Pereira;
– a "Quarentena Cinéfila", uma programação que a exibidora portuguesa Medeia Filmes organiza e disponibiliza em linha;
– as plataformas de arquivo de livros digitalizados e eletrónicos, entre as quais se contam a biblioteca digital da Biblioteca Nacional de Portugal.
6. Nos programas que a Associação Ciberdúvidas da Língua Portuguesa produz para a rádio pública portuguesa, realce para três entrevistas:
– No programa Língua de Todos, transmitido pela RDP África, na sexta-feira, dia 20 de março, pelas 13h20*, entrevista-se o escritor cabo-verdiano Germano de Almeida, que fala sobre o Jornal de Letras, Artes e Ideias – em Portugal, o conhecido JL – e a sua importância na divulgação das literaturas africanas em português.
– No Página de Português, emitido pela Antena 2, no domingo, 22 de março, pelas 12h30*, dá-se destaque à comemoração dos 40 anos de vida do JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias – com um depoimento do seu fundador e diretor, desde o início, José Carlos Vasconcelos.
O programa Língua de Todos é repetido no sábado, dia 21 de março, depois do noticiário das 09h00; e o Páginas de Português tem repetição no sábado, dia 29 de março, às 15h30. Hora oficial de Portugal continental, ficando ambos os programas disponíveis posteriormente aqui e aqui.