DÚVIDAS

«Enquanto crianças» e «em crianças»

Durante a tradução dum texto deparei-me com a frase «enquanto crianças, não tivemos opção.» e fiquei na dúvida se o correcto não seria mais «Em crianças, não tivemos opção».No entanto, esta segunda não me soa tão bem como a primeira.

Alterar para «Enquanto éramos crianças (...)», parece-me um pouco rebuscado. Podem esclarecer, por favor?

Um grande obrigado pelo vosso excelente trabalho!

Resposta

É uma construção possível e correta – uma elipse de «enquanto fomos/éramos crianças» –, embora a que tenha mais tradição seja efetivamente «em criança»/«em crianças».

Enquanto é geralmente uma conjunção subordinativa temporal («enquanto estive no campo, a minha mãe tratou-me das crianças», dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). É também corrente a introduzir uma contraposição: «Ela leva uma vida regalada, enquanto eu me farto de trabalhar», idem, ibidem).

Contudo, enquanto ocorre também antes de substantivo, para marcar «[uma perspetiva limitadora sob a qual se encara alguém ou alguma coisa»: «ele, enquanto escritor, não tem grande mérito»; cf. idem, ibidem)1. O caso de «enquanto crianças» corresponderá a este segundo caso, muito embora mantenha o valor temporal associado ao uso oracional da conjunção, podendo a expressão ser até parafraseada por uma oração – «enquanto [fomos/éramos] crianças» –, o que permite sugerir que a estrutura mais sintética constitui uma elipse.

Seja como for, trata-se de uma construção que encontra exemplos literários:

(1) «Lembrava-se do seu isolamento, enquanto criança» [Abel Botelho (1854-1917), Fatal Dilema, 1917 in Corpus do Português, de Mark Davies].

Quanto a «em criança», é outra construção de valor temporal, que também acha abonação literária:

(2) «Caramba! Esses analfabetos, esses mastigadores de lugares-comuns, esses tomadores de chá requentado e que lhes sabe a coisa fina, de não saberem o que seja chá, de em crianças nunca o cheirarem?» [Tomaz de Figueiredo (1902-1970), Noite das Oliveiras, 1965, idem, ibidem].

 

1 Este uso era condenado por certos autores normativos, como Napoleão Mendes de Almeida, no seu Dicionário de Questões Vernáculas (LCTE, Livraria Ciência e Tecnologia, 1994): «A leitor acostumado a ler bons escritores a declaração "digo isto enquanto mulher" não tem sentido. [...] Quer-nos parecer que a origem do erro "digo isto enquanto mulher" está no receio de alguma cacofonia no redigir: "digo isto como mulher". Ou o erro está em confundir enquanto com conquanto? Sinónimo de embora, conquanto é que é a conjunção concessiva para o caso, e tem ela sinónimos, encontráveis no parágrafo 584 da Gramática Metódica da Língua Portuguesa: "Digo isto conquanto mulher".» Observe-se, no entanto, que este uso de enquanto tem valor conformativo, e não concessivo; além disso, como é aqui apontado, encontra-se suficientemente consolidado para ser tido por incorreto.

 

 [N. E. (20/03/2020) – Como observa o consultor Luciano Eduardo de Oliveira (comunicação pessoal), a construção «quando crianças» é mais outra possibilidade».]

CfA origem da palavra «criança»

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