Diz-se que é hoje uma língua morta, mas o latim aparece bem vivo nesta nova obra do professor universitário português Frederico Lourenço, que revela como é essencial conhecê-lo para compreender os aspetos estruturais e históricos das atuais línguas românicas, entre as quais se conta o português. Mas esta é também uma gramática realmente nova, como promete o título, porque – o próprio autor faz questão de frisar –, ao longo de cerca de 500 páginas, se vai alcançando o propósito de reunir a informação essencial que a leitura de textos latinos, sobretudo os literariamente elaborados entre os séculos II a.C. e V d.C.
Trata-se de uma obra que abre com quatro secções introdutórias (Preambulum, “Abreviaturas, sinais e convenções”, “Introdução à língua latina” e “Noções básicas de pronúncia”), que dão as noções básicas para contextualização e apreensão da arquitetura da língua latina. Seguem-se três capítulos, os dois primeiros dedicados à descrição da morfologia e sintaxe latinas, conforme funcionavam no padrão clássico configurado pela literatura modelar do tempo de Augusto, sem perder de vista variantes que marcam arcaísmos ou inovações. O terceiro e último capítulo (Varia) aborda tópicos diferenciados sempre norteados pelo mesmo intuito de capacitar para a leitura em latim.
A experiência oferecida pela leitura dos dois primeiros capítulos é, por um lado, de proximidade linguística e, por outro, de estranheza. A afinidade vem do léxico, em que o falante de português reconhece sem dificuldade muitas das palavras que usa; mas o desafio é lançado na descoberta do funcionamento do sistema casual do latim e das subtilezas da sintaxe. As repetidas explicações históricas, sempre muito úteis, abrem janelas para os estudos do protoindo-europeu, apontando para uma pesquisa que, em Portugal, raros têm explorado, em prejuízo dos estudos de etimologia e toponímia. O leitor cedo se apercebe de que palavras portuguesas como pai ou pé, remontando, respetivamente, ao latim pater e pēs, se relacionam geneticamente com vocábulos ainda hoje semanticamente equivalentes em alemão, grego, russo ou sânscrito, participando, afinal, do vasto património lexical indo-europeu. A insistência na perspetiva diacrónica tem o interesse de levar o leitor-estudante a aperceber-se também dos textos como documentos da variação do latim, um sistema linguístico que, além de padronizado, normativizado e escrito, evidenciava, enquanto foi língua materna, fenómenos de variação, que não deixam de ter importância para o estudo da génese das línguas românicas, entre elas, o português. Assinalam-se, portanto, variantes quer arcaicas quer tardias, como é natural acontecer com qualquer língua de cultura, para mais, com a longevidade do latim.
No terceiro capítulo, dedicam-se duas bem desenvolvidas secções à métrica, dado o papel, no verso e na prosa, da quantidade vocálica, uma propriedade que as línguas românicas perderam. A secção que lista o vocabulário essencial nas pp. 433-467 responde à constante preocupação de disponibilizar informação mínima que equipa o leitor ou o estudante para os desafios lançados pela criteriosa antologia organizada pelo autor (pp. 468-495).
As referências bibliográficas constituem uma lista que, não precisando de ser extensa numa obra desta natureza, com os objetivos já referidos, denota o cuidado posto na sua seleção, abrindo portas a estudantes (não necessariamente de Estudos Clássicos) e ao público interessado, por exemplo, quando contribui para que a imprescindível bibliografia em alemão se torne mais conhecida no mundo de língua portuguesa. É o caso da famosa gramática de Kühner-Stegmann. Outras descrições mais conhecidas em Portugal não faltam, como sejam as de E. C. Woodcock ou de Alfred Ernout.
Os méritos desta gramática são, portanto, numerosos, sobretudo se se pensar também no papel formativo do latim no desenvolvimento de hábitos de reflexão metalinguística em português. Resta esperar que a Nova Gramática do Latim seja exemplo para novas publicações não só de Frederico Lourenço (que já manifestou vontade em publicar uma gramática de grego), mas também de outros classicistas, que, na universidade ou fora dela, se juntem ao esforço de resgatar o ensino das línguas clássicas da grave situação em que (ainda) se encontra em Portugal.
Cf. A gramática latina “desempoeirada” de Frederico Lourenço será para todos
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