«(...) Mudar de uma região para outra costuma ser um problema [no mundo árabe]. (...)»
Os árabes compreendem-se entre si? Numa área geográfica composta por vinte e dois países, existe o mesmo número, senão mais, de línguas nacionais, cada uma com as suas particularidades lexicais e gramaticais, sem esquecer as das minorias linguísticas (berbere, curdo, etc.). Muitas vezes classificadas como dialetos em oposição ao árabe corânico, bem como ao árabe clássico moderno (ou padrão) – ambos muito pouco usados na vida quotidiana, com exceção de certos meios de comunicação, principalmente os oficiais –, estas línguas árabes nacionais evoluem separadamente, tendo sido muitas vezes moldadas por contextos históricos distintos, incluindo o da colonização. No entanto, existem convergências regionais. No Magrebe, os darja ou darija (árabe marroquino) – como são chamadas as línguas vernáculas locais – não são herméticos entre si. Argelinos, marroquinos e tunisinos entendem-se com facilidade, ainda que um dos seus jogos favoritos seja o de identificar o uso de falsos amigos, alguns dos quais podem gerar constrangimento. Por exemplo, se a palavra tabboune designa pão, ou «forno de pão», na Argélia e na Tunísia, assume um significado completamente diferente em Marrocos, onde se refere à vulva ou à vagina, consoante o contexto. Compreendemos, assim, o constrangimento dos jornalistas marroquinos quando na televisão ou na rádio têm de pronunciar o nome do presidente argelino Abdelmadjid Tebboune...
No Médio Oriente, o chami consegue unir, com algumas variações locais, jordanos, libaneses, palestinos e sírios. O hejazi dissemina-se por toda a Península Arábica, porém existem particularidades em vários sítios, especialmente no Iémen. No Iraque, a influência combinada da herança beduína e do árabe clássico confere à língua nacional um caráter único, mas esta última permanece facilmente compreensível tanto no Mashreq como no Khalidj (Golfo). Por fim, a língua egípcia beneficia de um público que ultrapassa as fronteiras do país, tendo-se espalhado pelo mundo árabe graças às famosas telenovelas e também às peças de teatro e à música.
Sem barreira estanque
Mudar de uma região para outra costuma ser um problema. Um marroquino que fale darija em Beirute ou Amã terá dificuldade em se fazer entender. A solução mais prática é usar o árabe padrão, o que nem sempre é garantia de sucesso. Um repórter da televisão tunisina que entrevistou jovens kuwaitianos em linguagem cuidada foi criticado por «falar como na época dos califas abássidas». No entanto, não há barreira estanque, pois a base comum ainda tem grande importância, como atesta este episódio do Hirak argelino: em 11 de março de 2019, o Presidente Abdelaziz Bouteflika anunciou que renunciava para concorrer a um quinto mandato. Tardia, esta concessão não acalmou o protesto popular. Enquanto apresentava a notícia ao vivo, numa rua em Argel, a correspondente do canal de notícias de língua árabe Emirati Sky News Arabia foi abruptamente interrompida por um jovem. «Yetnahawgaa!» («Vamos eliminá-los a todos!»), exclamou Sofiane Bakir Torki com veemência, para mostrar que a partida de Bouteflika por si só não era suficiente. «Bel 'arbiya! ‘Arbia!» («Diga em árabe! Em árabe!»), pediu-lhe a jornalista, que queria que ele falasse em árabe padrão, que seria entendido por todos, ao que ele respondeu que tinha acabado de falar na “sua" língua, entenda-se argelino.
As imagens desta intervenção tornaram-se rapidamente virais na Internet e a expressão «Yetnahaw gaâ» generalizou-se quase de imediato como um dos principais palavras de ordem do Hirak. Se no Magrebe a expressão é compreendida sem dificuldade, tal não é o caso no Médio Oriente ou no Golfo. Nas redes sociais, os internautas sauditas e do Barém questionavam-se: Torki falou na língua amazighe (berbere) ou a sua declaração foi uma nova prova do caráter singular, para não dizer heterodoxo, dos dialetos árabes deste tão distante Magrebe? No decurso da discussão, concluiu-se que a primeira palavra, yetnahaw, tem as suas raízes na fossha, o árabe clássico mais frequentemente reservado para discursos oficiais, mas que é a sua forma, muito característica do darija argelino, que confunde. É, portanto, graças ao conhecimento do árabe literário e à custa de uma reflexão etimológica mais ou menos aprofundada que muitas palavras próprias dos dialetos magrebinos podem ser compreendidas pelos habitantes do Mashreq ou Khalidj. E vice-versa. Mas também é preciso identificar os empréstimos: a darija argelina, por exemplo, possui muitas palavras francesas arabizadas. «Krazatou tomobile» significa, portanto, «um carro atropelou-o». Será impossível para um egípcio ou um catariano entender esta expressão.
Mas voltando à palavra de ordem do Hirak. Ao contrário de yetnahaw, a palavra gaâ dividiu os internautas do Mashreq. Uma palavra berbere? Uma palavra “fóssil” herdada das tribos Banu Hilal, que, entre os séculos X e XIII, abandonaram a Península Arábica para invadir – e arabizar parcialmente – o Norte de África? As opiniões continuam a divergir, mas os internautas iraquianos argumentam que os beduínos do «triângulo sunita» a usam e que a encontramos em certos poemas populares.
Aparecimento de uma língua moderna
Essas interações mais ou menos cordiais não são invulgares, mas escondem uma evolução de fundo decorrente das convulsões mediáticas vividas pelo mundo árabe desde meados da década de 1990. Bem antes disso, devemos primeiro mencionar as políticas de arabização dos sistemas educativos lançadas desde a década de 1970. O árabe clássico como língua de instrução até o final do ciclo secundário suplantou gradualmente o francês ou o inglês. Mesmo que os resultados não correspondam às expectativas educacionais, as gerações mais jovens são mais capazes de entender e falar fossha do que as mais velhas. Posteriormente, o aparecimento de canais de entretenimento via satélite, incluindo o Middle East Broadcasting Center (MBC), atualmente sediado no Dubai, e os canais de informação ininterruptas como a Al-Jazeera do Catar, favoreceram o aparecimento de uma língua moderna, livre dos pesados constrangimentos gramaticais que espartilharam o árabe clássico.
Num ensaio publicado em 2012 (Arabités numériques. Le printemps du Web arabe, Actes Sud, 2012), o pesquisador Yves Gonzalez-Quijano, observador atento da evolução das sociedades árabes, concluía que «o novo árabe acabou por se impor: a sintaxe foi simplificada e o vocabulário modernizado». Quem acompanha um debate num canal de televisão tunisino ou libanês facilmente perceberá isso. Esta nova língua árabe, que não tem medo dos empréstimos nem das inovações, está em constante expansão. E acontece até que os internautas a escrevem com caracteres e números latinos. Deste modo, o lema do Hirak mencionado anteriormente também pode ser escrito “Yetna7aw ga3”. O arabizi, como é chamada esta escrita, testemunha que o árabe é tudo menos uma língua morta.
N. E. – As imagens aqui apresentadas provêm da publicação original. Na primeira imagem, mapeiam-se as variedades do árabe falado no Magrebe, ou seja no noroeste de África (rosa, violeta, roxo). Na segunda imagem, além de se representarem as regiões mais orientais do Magrebe, indicam-se as variedades do Egito (rosa velho e amarelo), as do Sudão (laranja), as da Palestina, Líbano, Síria, Jordânia e parte do Iraque (verde) e, finalmente, as da Península Arábica (azul).
Cf. A Influência do Árabe no Português
Tradução do artigo "Un arabe pour tous" ("Um árabe para todos"), publicado no mensário francês Le Monde Diplomatique, n.º 186, dezembro 2022/janeiro 2023. Edição, do original, do jornalista argelo-tunisino Akram Belkaïd.