O mirandês tem estatuto oficial há 25 anos - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Início Outros Diversidades Artigo
O mirandês tem estatuto oficial há 25 anos
O mirandês tem estatuto oficial há 25 anos
Uma língua não morre enquanto andar no sentir e no falar

O despovoamento ameaça o mirandês, mas o orgulho e a perseverança em disseminar um modo de falar vão garantindo a sua sobrevivência. O mirandês é a segunda língua oficial de Portugal há 25 anos.

 

O domingo amanheceu com um sol tímido, a permitir uma bonança que a trovoada da madrugada quase espantou. E, seja sábado ou domingo, Inverno ou Verão, os dias de Domingos Manuel Alves começam quase sempre da mesma maneira. Cedo, com o sol, porta fora, a caminhar pelo planalto. “Toda a vida fui pastor”, diz ele, com 84 anos, bata vestida por cima da roupa, a esconder um eventual fato domingueiro. Talvez não o use, até porque nem sabe se neste domingo há ou não missa na aldeia de Malhadas. “O padre vai a muitas aldeias, não vem cá todos os domingos. Só há missa quando ouvimos o sino a tocar.”

Domingos toda a vida foi pastor, mas já não tem gado para pastar. Mesmo assim, quer que os dias se mantenham iguais. E quando o dia nasce, é preciso pôr os animais cá fora. Agora não tem vacas, mas tem duas burras, a Andorinha, de 11 anos, e a Marta, de quase um. Os burros sempre o ajudaram a lavrar os campos. “Agora já não fazem nada”, revela. Ou fazem muito – afinal, fazem-lhe companhia nestes passeios matinais.

Aquele era o domingo em que se assinalava no calendário os 25 anos da aprovação, na Assembleia da República, da lei que reconhecia o mirandês como a segunda língua oficial de Portugal. Mas, para Domingos, era um domingo igual aos outros. «Não sei nada disso. Nunca fui à escola; não sei escrever nenhuma – nem mirandês, nem português», admite, com um sorriso tímido.

Mas sabe falar ambas. Fala a língua que ouviu aos pais e aos pares, na aldeia. Fala com a mulher, com os vizinhos, com os filhos. Tem três. Dois estão emigrados em Espanha, um ainda vive no planalto. «Mas eles já pouco falam», atira. Responde em português. Responde na língua em que lhe fazem perguntas. 

Quando José Leite de Vasconcelos, o linguista que sinalizou em 1882, pela primeira vez, que o português não era a única língua falada em Portugal, já tinha encontrado este tipo de procedimento. «Os mirandeses fallam o mirandês entre si, empregando o português quando se dirigem a estranhos», escreveu o linguista no livro Estudos de Philologia Mirandesa, publicado em 1890. Ele, que ouviu um estudante no Porto com um falar diferente, apressou-se a visitar Duas Igrejas, a freguesia onde todos os estudos começaram.

Não havia escritos, livros, manuais. Mas havia regras, sentido, significantes e significado. As fronteiras orográficas e administrativas das Terras de Miranda ajudaram a preservar um falar de origem asturiano-leonesa – haveriam de estudar e confirmar todos os académicos e linguistas que se apaixonaram pelo assunto nas décadas seguintes. O mirandês era um reduto apetecível para académicos e curiosos, pelos militantes defensores das línguas regionais e minoritárias.

Aurelia Merlan, filóloga romena, foi uma das académicas que estudaram abundantemente a língua. Publicou em 2009 uma monografia sobre o desequilíbrio linguístico nas Terras de Miranda e as suas consequências na deriva regressiva do uso do mirandês. Foi nas extrapolações de Merlan que se percebeu que por volta de 1960 o mirandês teria cerca de 15 mil falantes, isto é, 68% da então população mirandesa. Naquela altura, dois em cada três mirandeses sabiam e podiam falar a língua mirandesa, sendo certo que não a falavam em todos os locais. O português era a língua oficial para o culto religioso, a escola, a justiça e a administração pública. O mirandês era a língua habitual dos usos íntimos e informais, que se falava com a família, os vizinhos, os amigos.

Entretanto, os habitantes das Terras de Miranda, esses continuaram a enfrentar muitas mudanças. A população foi esvaziando o planalto, para emigrar ou para se aproximar da cidade, onde a língua da escola e a língua da igreja era a do “falar grabe”, a do falar português. E havia cada vez mais vergonha em falar «a lingoa do lar, do campo e do amor», como dizia Vasconcelos, fora das aldeias.

Alcides Meirinhos nasceu em Cicouro, a aldeia mais próxima de Espanha, quase em cima da fronteira da raia seca, há 62 anos. Lembra-se de falar português com os pais e de estes o obrigarem a aprender, e a falar, português – «se tu nun sabes pertués, nunca has de ser naide». Nunca hás-de ser ninguém. O mirandês era a língua da rua. «Mas nós na rua, na aldeia, continuávamos a falar mirandês, para que não pensassem que éramos ‘fidalgos’», explica.

O mirandês começou a ser ensinado em 1986 nas escolas locais. A Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa foi discutida e aplicada a partir de 1993. Mas foi só depois daquele 17 de Setembro de 1998 – quando, por proposta do então deputado Júlio Meirinhos, foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República a lei que reconhecia a língua – que o mirandês se tornou a segunda língua oficial de Portugal.

A Lei n.º 7/1999 havia de ser publicada a 29 de Janeiro de 1999 e nela se fazia o “reconhecimento oficial dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa”. A 5 de Julho desse ano o então ministro da Educação, Marçal Grilo, assinava o despacho normativo que regulamentava o direito à aprendizagem do mirandês, bem como o necessário apoio logístico, técnico e científico.

Mas 25 anos depois desse reconhecimento de existência, dessa prova de vida, o que há no sentir e no falar nesta terra “do último fim”? É o presidente da Associação de Língua e Cultura Mirandesa (ALCM), Alfredo Cameirão, quem se refere a esta terra no fim de tudo, citando os registos que encontrou no relatório deixado por um prelado de Évora que há quatro séculos (1609) visitou Miranda, quando esta tinha cabeça de diocese e era residência de um bispo. «‘Miranda, cidade antiga deste reino, fica situada no último fim dele’, escreveu o prelado. Portanto, não está no fim. Está no último fim. Ainda hoje Miranda é a capital de concelho mais distante do poder, em Lisboa. Talvez isso explique muita coisa», argumenta Cameirão.

Talvez explique, por exemplo, que, apesar desse reconhecimento oficial, a língua mirandesa não esteja ainda, e afinal, oficializada. Legislativamente falando, o único passo importante dado nestes últimos 25 anos foi a assinatura, a 7 de Setembro de 2021, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, da Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias. Mas ainda não desceu à Assembleia da República, não foi ratificada, regulamentada. «E ninguém percebe bem porquê. Enquanto isso não acontecer, a língua mirandesa não está, efectivamente, protegida», remata o presidente da ALCM.

A ALCM e a Câmara Municipal de Miranda – que assinaram um protocolo a partir do qual a primeira é financiada pela segunda, com um subsídio de 25 mil euros anuais – são, afinal, as duas entidades que estão no terreno a fazer alguma coisa para preservar e divulgar a língua. Há um roteiro por cumprir.

«O céu em cima da cabeça»

Em 2020, vários investigadores da Universidade de Vigo andaram pelas Terras de Miranda a fazer questionários à população para estudar os «usos, costumes e competências linguísticas da população mirandesa». Em 2023 publicaram o estudo Presente e Futuro da Língua Mirandesa, coordenado pelo catedrático de Filologia Galega Xosé-Henrique Costas, e é nessa publicação que está escrito: «A este ritmo de perda de falantes, em 2050 ou 2060 o mirandês perde-se como língua viva.»

Brigada de la Lhéngua – composta por uma série de graduados em Ciências da Linguagem e Estudos Literários – esteve no território a fazer o levantamento e percebeu que ao mesmo tempo que tinha tendência para crescer o uso de português, descia o uso bilíngue e o uso do mirandês. Por isso, o vaticínio de que em pouco mais de 30 anos o mirandês perca o estatuto de língua viva «não pode ser considerado uma ameaça, um mau agoiro ou uma impressão». «É um facto», confirma Alfredo Cameirão. 

Em 2020, vários investigadores da Universidade de Vigo andaram pelas Terras de Miranda a fazer questionários à população para estudar os “usos, costumes e competências linguísticas da população mirandesa”

Mas os sinos não estão propriamente a tocar a rebate, como uma tragédia anunciada o exigiria. Para todos os factos, os mirandeses parece que vão arranjando sempre argumentos. Como se vivessem numa pequena aldeia, onde os irredutíveis mirandeses resistem ainda e sempre ao invasor. A referência à clássica colecção de banda desenhada idealizada por Goscinny e Uderzo não é despropositada. Porque de entre todos os clássicos para começar a fazer traduções, foi por um dos títulos da colecção de Astérix que começaram a chegar aos escaparates livros em mirandês. O impulsionador foi Amadeu Ferreira, principal divulgador da língua mirandesa, que morreu precocemente em 2015. Mas a poção mágica ficou, está entre os “aldeões”.

Na aldeia dos gauleses, o único receio que havia era que o céu lhes caísse em cima da cabeça. Nas aldeias de Miranda, novos e velhos foram aprendendo que com o mirandês não poderiam falar com Deus, chegar ao céu: o mesmo prelado de Évora que dizia que Miranda era a terra do ultimo fim também dizia que os mirandeses falavam mal – falavam a língua dos suevos e visigodos, a língua dos povos bárbaros.

O invasor não tem cara, o principal inimigo parece ser a inércia que demora a oficializar, de facto, o mirandês. Talvez a poção mágica seja, afinal, a vontade firme de umas dezenas de activistas, a começar pela ALCM; por um punhado de professores que, estoicamente e com criatividade, vão mantendo o interesse e a motivação dos alunos que todos os anos se inscrevem numa disciplina opcional; e pelo lirismo, a inspiração e o sentido de pertença de vários autores que perderam a vergonha e ganharam a proua, o orgulho de escrever em mirandês.

Adelaide Monteiro, com 74 anos, é uma delas. Até ir para a escola primária, aos sete anos, nunca tinha tido qualquer contacto com o português. Nasceu em Especiosa, e nas ruas da aldeia e dentro de casa, com a mãe e os avôs, o mirandês era a única língua conhecida. «Mas eu aprendi a falar português num instante. O mirandês até ajuda», explica a autora.

Professora aposentada do ensino secundário – leccionou Contabilidade e Gestão numa escola de Sintra – foi preciso aproximar-se da reforma para dar azo à sua vontade de escrever. Foi num blogue escrito em mirandês – Cachoneira de letras de la Especiosa – que através de uma personagem por si criada, a Tie Purdéncia, recriava as memórias que tinha das mulheres da sua aldeia. Foi por causa desse blogue que Amadeu Ferreira a conheceu. «Hoje posso dizer que o mirandês me trouxe muita coisa. E a mais importante de todas foi conhecer toda esta gente, fazer todos estes amigos», afirma.

Adelaide Monteiro fez parte do naipe de quase uma dezena de autores que, em 2010, levou ao prelo publicações em mirandês. Estreou-se com o livro de poemas Antre Monas i Sbolácios (Entre Bonecas e Tentativas de Voo), numa espécie de regresso à infância e ao planalto. Depois desse, publicou mais quatro, sempre em poesia, cada vez com mais certeza de que pensa em mirandês, fala em mirandês.

«No início, estava muito esquecida. Faltava-me o vocabulário. Quando o Amadeu me contactou, por causa de um comentário que pus num blogue do Alcides, nunca mais parámos de falar. Nunca mais parei de escrever. O Amadeu corrigia-me os textos. E ele vinha lá com o sendinês dele e eu insistia no meu central, tradicional. Entendíamo-nos bem», conta Adelaide. Porque dentro do mirandês há três variantes: o sendinês, o central e o da raia. O central é o dominante.

«Desde que desbloqueei, só consigo escrever em mirandês. E já não escrevo para a gaveta», diz a autora. Adelaide Monteiro prepara agora a sua primeira incursão na prosa – Monólogos de Solidão – para levar ao prelo as histórias e as memórias que ouviu à mãe, recentemente falecida.

«Eu acho que sou uma privilegiada por poder dizer que sou mirandesa, por ter esta língua, por ter esta terra. Eu gosto muito de outras terras, vivi em Moçambique, fiz a minha vida em Lisboa. Mas este cantinho de Portugal é uma verdadeira riqueza. Tudo isto me inspira», diz a poetisa. É no planalto, na aldeia de Especiosa, que escreve, que lê, que pinta. «É em mirandês que penso e que sinto», e a par do desejo de publicar as memórias da mãe, vem o desejo de, em casa, começar a falar mirandês com os filhos. Para que a neta também possa aprender.

 

Privilégio e tradição

É de privilégio que fala também Célio Pires, um militar da Guarda Nacional Republicana que, diz ele, tem o privilégio de poder viver na sua aldeia. Cresceu entre gaitas e pauliteiros na aldeia de Constantim. «Morar numa aldeia actualmente é o contrário de antigamente. Só conseguem morar numa aldeia os privilegiados. Eu sou um deles, tenho essa sorte. É aqui que me sinto bem. Posso ir todos os dias para o meu trabalho, e voltar a casa, à oficina, construir instrumentos, compor músicas, fazer concertos, sem ter de andar em filas para Multibanco, comboios, trânsito.»

Diz que na aldeia moram pouco mais de uma centena de pessoas e que todas falam mirandês. «Claro que sim. A nossa língua é o mirandês. Mas também sabemos português, como sabemos espanhol e, às vezes, inglês e francês», ironiza. Diz que aprendeu na escola, mas, sobretudo, aprendeu com os pais. «É nas famílias, em casa, que se aprende as línguas a sério», explica, garantindo que está a fazer esse mesmo trabalho com a sua filha de quase nove anos. Célio tem 47 e hoje é um reconhecido construtor de instrumentos musicais. Construiu a sua primeira gaita-de-foles aos 13 anos. «Fi-lo por necessidade. Não encontrava a gaita que precisava, aprendi a fazê-la», explica.

Entretanto, perdeu a conta ao número de gaitas que construiu, assim como flautas e fraitas (as flautas tamborileiras, que fazem conjunto com o bombo que acompanha as actuações dos grupos de pauliteiros). Também já construiu dezenas de sanfonas e tem uma lista de espera para este instrumento para os próximos cinco anos.

«Não me orgulha ter uma lista de espera tão grande. Mas o tempo não me chega para tudo», explica. Porque Célio constrói não só os instrumentos musicais como as ferramentas para os construir. E, claro, sabe tocar todos os instrumentos que constrói. E foi com esses instrumentos que se tornou compositor musical – são dele todas as canções originais que grava em disco e mostra em palco com os Trasga, um grupo mirandês de música tradicional, que toca apenas inéditos nesta língua.

Célio é dos que acreditam que a língua mirandesa não vai desaparecer. «Está ameaçada desde sempre. Há centenas de anos que dizem que vai acabar. Mas ainda por cá se fala. E vai continuar a falar», assegura.

Há sinais positivos a corroborar o optimismo de Célio. Por exemplo, o facto de, todos os anos, cerca de 75% dos alunos matriculados no Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro optarem por se inscrever na disciplina de Língua e Cultura Mirandesa. É uma disciplina optativa, uma oferta complementar que aumenta o horário da escola. Pode ser frequentada desde o jardim-de-infância, desde os três anos, até ao 12.º ano de escolaridade.

Inês Preto está inscrita desde os cinco anos. Já tem 14 e quer continuar a estudar, mesmo que em casa já quase ninguém fale. «A minha mãe sabe falar, mas o meu pai não. Só pratico o mirandês quando estou com os meus avós, ou quando vou de visita a Paradela, a aldeia deles, onde os vizinhos também falam», explica Inês.

Inês Preto não quer continuar a estudar Mirandês porque pode usar a língua no dia-a-dia – na verdade, não a usa. Nem porque é mais fácil em termos de regras gramaticais do que o português – «eu acho que a gramática do português é mais difícil do que a do mirandês», afirma. Quer continuar a usá-la porque gosta. Nos primeiros anos foram os pais que a inscreveram nas aulas, agora fá-lo por vontade própria. «É muito bom percebemos o que está na origem das nossas tradições aqui em Miranda, como é que as coisas se organizavam.»

Inês Preto tinha acabado de desfilar pelas ruas da cidade, em conjunto com mais sete amigas que, com ela, fundaram em 2021 o grupo As Pauliteiras, da Associação Mirandanças. Aprenderam a dançar sete lhaços (danças), andam a ensaiar o oitavo. Por levarem a tradição muito a sério, e por quererem mostrar «que as mulheres também conseguem fazer o que os homens fazem». No grupo há meninas dos 14 aos 17 anos. E dois anos depois da fundação, muitas apresentações depois e muitas palmas recebidas, Inês diz que o maior desejo do grupo era «que entrasse mais gente».

O despovoamento é a maior ameaça. Nos Censos de 2021, Miranda do Douro apresentou uma pesada taxa de crescimento negativo: perdeu 13,6% da população. Em todo o concelho há pouco mais de 6500 habitantes. Mas os que de lá saem levam a cultura com eles.

Suzana Ruano nasceu em Paris, filha de pai mirandês e de mãe aveirense. O planalto, a aldeia de Duas Igrejas, onde nasceu o pai, as tradições de Miranda do Douro estão-lhe nas raízes, no corpo, na cabeça. E agora, também na língua. «Desde que me tenho por gente que ando metida nestas coisas. Quando era pequenina, saíamos da catequese e íamos aprender a dançar os repasseados, fazer teatros… tudo isso faz parte de mim. Quando saía daqui, qualquer coisa em que me metesse, levava sempre a minha cultura», diz ao P2.

Suzana tem 41 anos, mas quando tinha idade para aprender mirandês na escola, foi das que não se inscreveram. «Entre ter Religião e Moral, Mirandês e nenhuma das duas, eu escolhi a última…», explicava no episódio 54 do podcast Terreiro de la Lhéngua 25, uma iniciativa da ALCM que decorre com a Casa Comum da Universidade do Porto. «Não haja dúvidas de que hoje seria diferente, e teria o Mirandês no meu currículo escolar», refere esta compositora, tocadora de gaita, bailarina, dinamizadora cultural e licenciada em Ciências do Ambiente.

Há muitas coisas que Suzana Ruano pode incluir no currículo. E ter criado o Hai Baile Ne L Toural, integrar a associação cultural e escola de música Lérias, de Palaçoulo, ou subir a vários palcos, nacionais e internacionais, com os grupos musicais Lôa Trovadoresca e Las Çarandas são apenas alguns deles. Nos últimos dois anos, o currículo de Suzana escreve-se na própria ALCM, depois de ter respondido a um anúncio de emprego que a tornou funcionária da associação – e lhe deu oportunidade de fazer uma das coisas de que mais gosta: andar a percorrer as aldeias do seu concelho e ouvir «as bibliotecas vivas» a falar mirandês.

Ao mirandês sempre faltaram livros, manuais, literatura. Mas ainda há muitos falantes nas aldeias e, com o seu discurso, podem ajudar a escrever a história e as estórias do mirandês. Suzana Ruano e Alcides Meirinhos são os dois funcionários da ALCM que estão a desenvolver o projecto Ourrieta las Palabras – Adonde Mana la Lhéngua, que tem como objectivo recolher 300 horas de gravação, áudio e vídeo, de mirandês em fala pura. 

Foi por causa desse projecto que já foram a Constantim ouvir Ti Felisbina Fernandes, de 95 anos, pastora e antiga contrabandista. Ou ainda vão a Cicouro ouvir Ti Moisés, de 88 anos, carpinteiro e escultor. «As bibliotecas estão a arder, temos de nos apressar a salvá-las, gravá-las, antes que desapareçam, e com elas desapareçam as nossas tradições, e o muito da nossa língua», exorta Alcides Meirinhos, sublinhando que usam técnicas rudimentares e material de gravação emprestado. Mas não desdenham no empenho e profissionalismo.

Não ouvem apenas os idosos que nunca saíram do planalto. Querem recuperar as memórias também daqueles que tiveram o mirandês como língua materna, mas que tiveram de a guardar assim que chegaram à escola, ou chegaram à cidade. Como Francisco Belharino, de Genísio, ou a esposa, Irene Domingues, natural de Caçarelhos. Caçarelhos é uma freguesia do vizinho concelho de Vimioso, e essa é outra particularidade desta língua minoritária: não se fala mirandês em todas as freguesias de Miranda (em Atenor, por exemplo, já não se fala há mais de 100 anos), e há três aldeias de Vimioso onde se fala mirandês: Angueira, Caçarelhos e Vilar Seco.

Tanto Francisco como Irene têm mais anos de morada em Lisboa do que de vida passada no planalto das Terras de Miranda. Ele, de 78 anos, militar e licenciado em Desporto, ela de 71 anos, professora, deixaram de falar mirandês assim que chegaram à escola primária. Mas no jardim-infantil e escola básica que fundaram em Linda-a-Velha (o Externato Príncipe Perfeito) fizeram questão de ensinar Mirandês aos alunos. «É uma questão de manter a diversidade da nossa cultura», diz Francisco, que depois de reformado se tornou um activista da língua e um investigador das tradições das Terras de Miranda.

A presidente da Câmara de Miranda do Douro, Helena Barril, admite que a defesa do mirandês pode ser um factor de desenvolvimento económico, por isso tem defendido a criação de um organismo de defesa da língua mirandesa enquanto causa comum e também um activo cultural e económico.

A proposta de criação do Instituto da Língua Mirandesa (submetida pelo deputado do Livre, Rui Tavares) foi aprovada em sede de discussão do Orçamento do Estado para 2023, com uma dotação de até 100 mil euros. Mas a verdade é que ainda não saiu do papel. Essa parte está na mão do Governo, mas Rui Tavares ainda não desistiu de lutar pela língua. Em Julho passado avançou com uma «proposta de emenda» à Constituição «na parte sobre a educação e cultura» para que o Estado reconheça «a existência secular da língua mirandesa no território português e apoie a sua preservação e desenvolvimento». O objectivo é «dar ao Estado uma obrigação de preservar a língua», já que, se nada for feito, «o mirandês estará condenado», diz Rui Tavares. «Esta é a emenda do Livre: preservar o tesouro que é o mirandês e promover o potencial que tem», continua.

Nos cafés que se espalham pelas aldeias do planalto, é mirandês que se fala nas mesas onde se joga chincalhão (um jogo de cartas que envolve três pares, sinais secretos e muito bluff). Nos jardins-de-infância, os professores como Emílio Martins reinventam-se para levar aos mais novos brincadeiras em mirandês – nem que isso signifique pôr em marcha um canal de YouTube e criar personagens como o Emílio Pica. Nos palcos, leva-se a música tradicional, as gaitas e os pauliteiros, as fraitas e os tambores, as danças e os cantares.

Os mirandeses recusam decretar a morte da sua língua. A poção mágica vai sendo bebida e espalhada, mesmo que os recursos financeiros, tecnológicos, administrativos, pareçam sempre insuficientes. Sejam 1500 ou 3000 falantes, são sempre poucos para o tanto que significa ter uma língua minoritária reconhecida oficialmente. «A salvação do mirandês há-de ser aquela que os mirandeses quiserem», vaticina Alcides Meirinhos. E uma língua não morre enquanto ela andar no sentir e no falar. E, afinal, mesmo o que está no último fim também pode ser a continuação ou o princípio de alguma coisa.

Fonte

Reportagem publicada no Ípsilon, separata do jornal Público, em 8 de outubro de 2023.

Sobre o autor

Licenciada em Comunicação Social na Universidade do Minho. Jornalista do jornal Público desde 1998, escreveu na secção Local, donde passou, em 2004, para a secção de Economia. Tem acumulado colaborações com outros jornais e revistas (como a Evasões, ou a Time Out) e com projectos na área do turismo e da hotelaria (como a Hotelandia).