«(...) No Porto, os palavrões não são obscenos: são uma arte e uma filosofia. Não sei se algum linguista analisou alguma vez este fenómeno. Mas valia a pena. (...)»
Em nenhum outro lugar do país se fala um português tão rico como no Porto. Perdoem-me os bem-falantes de todas as latitudes, mas eu, que já morei em muitas terras, nunca vi acariciar as palavras como no Porto. E não me refiro às camadas cultas. Por mais que isto custe aos lusos doutores, na invicta, o povo apoderou-se do verbo. «No Porto?», pasmará um lisboeta. «Eu quando lá vou só ouço palavrões!» Precisamente. Esse é um exemplo fascinante. No resto do país, os palavrões são usados em situações extremas, para mostrar desagrado por uma situação, ou para insultar alguém, que pretendemos rebaixar. E, usando-os, rebaixamo-nos a nós próprios também. É para isso que servem: para reduzir à obscenidade.
No Porto, os palavrões não são obscenos: são uma arte e uma filosofia. Não sei se algum linguista analisou alguma vez este fenómeno. Mas valia a pena. Primeiro porque, no Porto, os palavrões são fiéis à sua natureza — são vulgares e ordinários. Não são, como noutras regiões, raros e extraordinários. São de todos, e não de uma elite indecente. Depois, porque servem para exprimir uma sabedoria.
A táctica é esta (e digo-o com todo o respeito e admiração pela terra onde nasci): há um jogo de metáforas, todas elas referentes ao acto sexual, que servem para compreender a vida. É um universo alegórico em que o sexo não é mais do que um exercício utilitarista de dominação e humilhação, uma economia do dar e do receber, um negócio de favores, promessas e cobranças. Visto desta forma, a vida erótica comporta uma panóplia de situações que correspondem a outras tantas da vida em geral.
Atenção, trata-se de um jogo tácito, e não de um machismo empedernido ou um marxismo de caserna. Por exemplo, se se disser que alguém «apanhou no c. e nem piou», isto significa que foi vítima de um abuso tão descarado que nem teve tempo de protestar. A expressão aplica-se a situações tão variadas como ter pago um preço exagerado num restaurante ou ter sido despedido sem justa causa. Parte do princípio de que o sexo anal é um acto de prazer unilateral, que implica portanto a humilhação do sujeito passivo.
Por outro lado, a expressão «tenho apanhado muito no c.» significa que já sofri muito na vida, pelo que estou preparado para grandes desafios. Uma expressão equivalente mas talvez ainda um pouco mais amarga é «eu já fiz muitos b.»
Se alguém responder a um pedido ou a uma proposta com a frase «na c. da tua tia!», isso significa uma recusa peremptória, como quem diz «isso é que era bom!» ou «isso é o que tu querias!», numa alusão ao eventual desejo subliminar e inconfessado de ter acesso às partes íntimas de figuras respeitáveis da família. Mas, se a frase for «até rima da c. da tua prima», significa um sinal de cumplicidade. A simples alteração do grau de parentesco implica uma reviravolta semântica. É todo um jogo de subtilezas. Mais um exemplo: as elocuções «p. que te pariu» ou «filho da p.» são inequivocamente negativas, pois pressupõem que a mãe do interlocutor seria uma trabalhadora do sexo, pelo que o coito que deu origem àquele terá sido, não de amor, mas um acto mercantil. Pelo contrário, dizer «meu grande filho da p.» é um gesto de carinho, talvez por sugerir que o indivíduo em causa, por se ter comportado como um grande filho, merece o respeito e a protecção da sociedade, apesar das circunstâncias pouco auspiciosas em que foi concebido.
Artigo do jornalista português Paulo Moura, no matutino Público de 18/02/2007