«[...] [A]s palavras podem ser mais ou menos correctas dependendo do contexto em que são ditas. Um palavrão será incorrecto numa transmissão televisiva, mas será quase obrigatório noutras situações, mais amigáveis.»
Ah, o bom e velho palavrão!
Não é tão bom gritar um palavrão quando damos com os dedos dos pés na porta?
Alivia, e não é pouco.
Parece que não é só impressão. Alguns estudos corroboram aquilo que sabemos: dizer palavrões é uma espécie de analgésico barato. Ou seja, fazem bem à saúde. E até podem ser sinal de que a pessoa que os usa em excesso é criativa (mas isso talvez seja puxar a corda quase até partir).
Seja como for, os palavrões são uma espécie de armas mentais: permitem-nos insultar, excitar, animar, enfurecer e, em geral, acordar toda uma série de emoções muito fortes em qualquer pessoa. Se quase todas as palavras nos fazem sentir uma ou outra emoção, os palavrões são uma espécie de injecção de adrenalina na mente.
Mas, talvez por isso mesmo, há quem veja a proliferação de palavrões como sinal da degeneração dos tempos: para os catastrofistas, cada vez menos as pessoas sabem controlar as emoções. Não concordo, mas será por aí que vem a associação dos palavrões à imoralidade: os que os usam em excesso serão gente menos controlada.
Ainda ontem [dia 2/01/2016] estive a ler os comentários a este texto [do deputado do Bloco de Esquerda] José Soeiro e parece que muitas pessoas não conseguem entender como é que o Expresso publicou um texto daqueles.
E, no entanto, os palavrões, nesse texto, tinham uma função. Não eram gratuitos. Serviam para atacar, com sarcasmo, aqueles que têm medo que o piropo tenha sido criminalizado (não, o que foi criminalizado foi o assédio e o uso de palavras para violentar outra pessoa — lá está: um palavrão, por si, pode ser uma forma de violência).
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Os palavrões são, de facto, palavras muito curiosas: aquilo a que se referem não nos horroriza por si só — há palavras normais que se referem às mesmas coisas («vagina», «pénis», «fezes», etc.), mas que não têm a mesma carga emocional.
Por outro lado, os mesmos sons, com outro significado, podem ser palavras banalíssimas — basta pensar na palavra para designar «galo», em inglês: «cock». Quando se refere à ave, ninguém mexe um cabelo. Já quando é usada com outro significado, é bem capaz de ruborizar as faces dos mais sensíveis…
Em Portugal, também temos casos desses. O próprio «leite» do título de Soeiro pode ser considerado um palavrão no contexto certo. Também o verbo «comer» é quase um palavrão na frase certa. Os animais, então, têm tendência para esta dupla função: uma cabra, na montanha, mas noutros contextos é palavra para aleijar um bocado.
O que se passa aqui? Por que razão existem estas palavras? Porque têm este efeito em nós?
Aconselho-vos a ler um livro de Steven Pinker, onde o mistério destas palavrinhas malandras é muito bem explicado: Seven Words You Can’t Say On Television. (Podem começar pela crítica do The Guardian.)
Aliás, se gostam mesmo de línguas e de linguagem, leiam o livro onde esse texto foi publicado originalmente: The Stuff of Thought. Nas horas de leitura desse livro, vão aprender mais sobre a natureza das línguas humanas — e, aliás, sobre a nossa natureza de seres humanos — do que em muitos anos de outras leituras.
Ora, mas a pergunta mantém-se: como é que estas palavras têm uma força tão grande?
De forma muito superficial, os palavrões estão guardados em partes do cérebro primitivas — são palavras como gritos ou urros. Estão em regiões tão profundas do cérebro, que são activadas por reflexo. Ou seja, quando damos um pontapé na porta, a parte mais instintiva do cérebro pega nessas palavras e manda-as para a nossa boca, num grito animal.
Ora, o nosso cérebro mais civilizado consegue, se assim entender, parar o processo a meio e, assim, surgem os palavrõezinhos, se assim quiserem: aquelas palavras que começam pela sílaba do palavrão, mas logo a seguir são tapadas, de forma envergonhada, com sílabas mais inócuas, ali postas pelo pudico que há em nós.
Exemplos? Caraças. Fogo. Carafo. Poças. E por aí fora.
Para que estas palavras tenham esta força, têm de ser um tabu. Ou seja, temos de aprender muito cedo que não se podem usar em situações normais. O nosso cérebro associa a palavra a um tabu emocional e dá-lhe essa força, que usa para aliviar a dor (grandes voltas dá a nossa cabeça, há que dizer). Digamos que o cérebro, ao perceber que a palavra é proibida, enterra-a nas profundezas de si próprio, indo lá buscá-la em ocasiões especiais. Quando, de facto, a usamos perto de outras pessoas, o cérebro dessas pessoas ouve essas palavrinhas bonitas e a emoção que sente é forte, primitiva e irreprimível.
Não há sociedades sem tabus — e, de facto, não há registo de uma única sociedade que não tenha palavrões e estes são, muitas vezes, das palavras mais antigas de cada língua. O que não quer dizem que os palavrões não vão mudando ao longo dos tempos: certas expressões religiosas eram palavrões em inglês até há pouco tempo (Jesus! My God!), mas hoje já começam a ser aceitáveis em quase todos os contextos.
Da mesma forma, os insultos raciais são hoje dos palavrões mais fortes que a língua inglesa tem (como a famosa n-word). No século XIX, seriam insultos (infelizmente) habituais (o que sentiria a vítima de tais insultos já será outra questão).
Em Portugal, dá-me a sensação (mas não estudei a questão) que a palavra «porra» já perdeu o estatuto de palavrão.
Talvez outras estejam a caminho de o ser, em sua substituição.
Tudo isto, para concluirmos três coisas:
1. Uma palavra é mais ou menos correcta dependendo do contexto.
Ao contrário do que alguns puristas afirmam, as palavras podem ser mais ou menos correctas dependendo do contexto em que são ditas. Um palavrão será incorrecto numa transmissão televisiva, mas será quase obrigatório noutras situações, mais amigáveis.
Aliás, usar palavras normais em certos contextos será incorrecto: imaginem uma namorada que descobre que o seu mais-que-tudo só consegue referir-se à anatomia do seu corpo usando as palavras científicas, mesmo na cama… Não se pode dizer que seja um uso correcto do português…
Ou seja: a língua é muito menos sólida do que pensamos e as regras do português padrão não se podem aplicar a toda e qualquer situação. Pensar em palavrões ajuda-nos a perceber isto mesmo…
2. Todas as palavras têm uma carga emocional mais ou menos forte.
Os palavrões são um exemplo extremo da carga emocional que as palavras têm. Ora, a literatura usa essa mesma carga emocional — incluindo os palavrões, claro está. A arte do escritor está em usar as emoções que as palavras despertam para criar arte directamente no cérebro do leitor.
Por outro lado, um ensaio que tenta ser claro e convencer de forma racional pode tentar usar palavras com cargas menos fortes, evitando as associações emocionais que nos toldam o pensamento.
Assim, para escolher as palavras certas temos de perceber o significado, mas também o impacto emocional habitual dessas mesmas palavras.
Não que seja sempre possível saber que impacto terão nos ouvintes ou leitores — as emoções associadas a uma palavra podem ser comuns a uma comunidade linguística, ou podem ser muito privadas. Às vezes, mudam de acordo com a educação, a ideologia, os hábitos familiares, as experiências de cada um — e também por aí se entende as grandes diferenças de gosto e de opinião sobre tanta coisa, da língua aos livros, passando pela política.
Pode ser difícil saber o impacto que cada palavra terá em cada leitor, mas quem fala e quem escreve deve, pelo menos, ter essa preocupação.
(Por exemplo, a questão de «o comer», de que já aqui falámos: já percebi que, para muitas pessoas, o uso desta palavra acorda emoções fortes, que não posso senão respeitar — é considerada por muitos uma construção «baixa», enquanto para outros é uma expressão familiar normalíssima. O que é erro é disfarçar a questão com argumentos linguísticos absolutamente irrelevantes: não é erro de português, mas sim uma questão de etiqueta social.)
(Só uma nota sobre tradução: às vezes, os tradutores-legendadores são acusados de reduzir o número de asneiras nos filmes: mas convém ter em conta, entre outros factores, o impacto do palavrão escrito em contraste com o impacto do palavrão dito — parece haver um tabu mais forte no uso do palavrão na escrita, talvez porque, na escrita, o habitual é usar um registo de língua mais formal do que na oralidade. Vejam o artigo de Luísa Ferreira sobre isto mesmo.)
3. Para podermos continuar a usá-los, não podemos abusar dos palavrões…
Os palavrões são úteis, às vezes até são simpáticos (para mal dos pecados dos moralistas de serviço), mas, para continuarem a ter utilidade como forma de aliviar a dor e provocar emoções fortes, têm de continuar a ser objecto de um certo tabu. Usar palavrões em demasia, fora do contexto próprio, é a melhor forma de lhes destruir a magia e tirar a força, tão útil em certos e determinados momentos…
Ou seja, se todos dissermos palavrões a toda a hora e em todas as ocasiões, estas palavrinhas perdem o valor — mas também não se preocupem muito: logo encontraremos substitutos à altura, que as línguas são coisas de espantar.
Cf.: "Quando tentamos censurar a linguagem das pessoas, estamos a tentar censurar os sentimentos”, Como inventar um palavrão?, 20 insultos inconvenientes (e pouco conhecidos…)
Artigo do tradutor e professor universitário português Marco Neves, transcrito, com a devida vénia, do seu blogue Certas Palavras, com a data de 3/01/2016. A ilustração é também do original.