«(...) O palavrão é gratuito se não passar de uma forma de ofender. Mas é enfático, como o de Éder ou amigável quando o utilizamos para caracterizar algo de nobre ou bom ("Ronaldo dá dinheiro como o caralho para causas de solidariedade").
É, ainda, educativo se formos à procura das origens das palavras, tantas vezes inocentes (como pequeno pau em caraculu) que desconstrói a ordinarice do vocábulo atual (o mesmo em puta, que significava em latim menina, como putus se referia a rapaz, de onde o nosso puto significar o mesmo).
De qualquer modo, como em tudo na vida, convém não abusar. (...)»
[ın semanário "Expresso" de 31 de julho de 2016]
A primeira coisa que ocorre ao literato quando ouve Éder gritar, perante a multidão reunida na Alameda Dom Afonso Henriques, «hoje é feriado, caralho!», é se ele utilizou calão, vernáculo ou se foi simplesmente ordinário. Vamos ver, socorrendo-nos do imprescindível dicionário etimológico do grandioso José Pedro Machado (1914-2005).
Comecemos por ordinário. Na verdade, o vocábulo significa «posto por ordem conforme à regra ou uso». Ora, não sendo uso a palavra perante multidões, digamos que não se tratou de algo ordinário. E se chamamos ordinário a alguém que usa palavras mais ásperas é porque esse alguém não sai da mediania da ordem – é vulgar (e não é por acaso que em francês ordinário se diz vulgaire).
Passemos a vernáculo. Vem do latim vernaculu e dizia-se dos escravos nascidos em casa do senhor. Tornou-se, depois, sinónimo de algo que tem um uso antigo e próprio da nossa terra. É mais o caso da palavra de Éder.
Por último, calão. Aqui temos um problema politicamente correto, mas esperemos que compreendam que isto é investigação pura. O grande especialista, etnólogo e filólogo Max Leopold Wagner (1880-1962) escreveu no Boletim de Filologia, uns tomos largos, que a palavra portuguesa calão vem do espanhol calón, que por sua vez vem de calo, que significa preto no idioma do povo calé, roma ou cigano. Os ciganos, por se considerarem de pele mais escura, chamavam-se a si mesmo calón e as palavras que usavam passaram a ser designadas calón, que em português vem a dar calão. (Saliente-se que, apesar de haver um cigano na seleção não consta que ele tenha usado publicamente o calão).
O USO
Já o vocábulo que Éder inesperadamente usou vem do latim caraculu que significa (vá lá, pessoal, sejam modestos) "pequeno pau". Este vocábulo tem origem no grego chárax, estaca para a vinha. Há quem sustente, igualmente, a via celta do radical car – tudo o que é direito e empinado, desde logo as pedras erguidas para o céu, ou menires, como no alinhamento de Carnac. Mais tarde era assim designado o pequeno cesto do mastro principal do navio, ou cesto da gávea, usado para avistar ao longe. Por ser um lugar inseguro há quem pense que daí nasceu a antiga expressão «vai para o... cesto». De qualquer modo, já em 982, há mais de mil anos, se podia ler na outorga de privilégios a um mosteiro catalão que das suas terras fazia parte o Mons Carallo, ou seja, um monte com o nome que adivinham o que quer dizer (chama-se, ainda hoje, Puig Carallot, sendo que Puig é elevação ou colina). A palavra carall é comum em catalão como no topónimo. Carall Bernat, uma ilhota com a forma que imaginam na costa brava (ilhas Medas) ou, não longe, nas ilhas Columbretes, a ilhota El Carallot, que também deve o nome ao seu aspeto, são disso exemplo.
Já pelo castelhano nos chega o termo carajo (ainda hoje na América Latina dois L lê-se J). Este carajo não tarda em dar o popular e, sobretudo nortenho, carago.
«Eternas cortes dos caragos ocos, eu as chamei primeiro», escreveu o Padre José Agostinho de Macedo (1761-1831) em Os Burros. Adversário de tudo o que cheirasse a liberal (liberal era a esquerda), perseguidor incansável dos pedreiros-livres (maçonaria) e diretor de um jornal com um nome elegante, como ele, A Tripa Virada, Macedo, mesmo sacerdote, não temia as palavras.
Temos, pois, aqui provas provadas em como Éder não foi o primeiro (nem será o último) a usar a palavra maldita que designa o órgão sexual masculino, ou “pequeno pau”, em público ou em publicações. Mas os séculos XIX e XX foram bastante mais puritanos na utilização de vocábulos do que outras eras anteriores.
Há 50 anos era comum as redações saberem que nunca podiam escrever as chamadas palavras malditas. Mais tarde, as reticências entraram em cena, mas só quando fosse para citar alguém necessário ao contexto da história. «Ele mandou-o para o c...» ou ela disse que «nunca f… por dinheiro» eram eufemismos vulgares. Mais tarde, as palavras entraram por inteiro, mas discretamente, a meio dos textos. Depois deste Europeu, chegaram aos títulos.
Voltemos aos grandes espaços públicos. A primeira palavra feia, chamemos-lhe assim, de que há memória numa manifestação foi com um primeiro-ministro. O almirante Pinheiro de Azevedo (1975), farto de ouvir os apaniguados do PCP e da extrema-esquerda a chamarem-lhe fascista, não resistiu e chegou à janela para gritar: «Bardamerda para o fascista!» A palavra tem uma etimologia nojenta (vem da contração da expressão «beber da merda»), mas tal como o calão que lhe está na origem já não pode ser considerada muito grave.
Quase 40 anos depois, o famoso (e felizmente vivo e atuante) Eduardo Catroga utiliza na televisão o termo pentelhices (é mesmo com e). Ora, pentelho é cada um dos pelos que cobrem a púbis. Está perto, anatomicamente, da palavra utilizada por Éder, mas é sinónimo de minudências e não usada como pelo futebolista ou pelo Almirante como interjeição. Em comum, as três palavras têm, no entanto, o facto de serem ditas em momentos de exaltação (sob ataque no ex-primeiro-ministro; sob pressão de uma negociação com a troika no caso do atual presidente do Conselho Geral da EDP; ou sobre as nuvens em que todos os jogadores – e em especial o que marcou o golo da vitória final – estavam depois de ganho o campeonato europeu).
A MEDIDA UNIVERSAL
Acontece que a palavra usada por Éder é uma medida universal em português de Portugal e de todos os outros espaços onde o português se fala. Repare-se que um brasileiro pode dizer «come para caralho» ou «trabalha para caralho» como sinónimo de alguém que é excessivo nas doses de comida ou esforço. Mas em Portugal o paradoxo é total. Qualquer coisa pode ser grande como o caralho, pequeno como caralho, alto como, baixo como, largo como, estreito como, frio como, quente como, mal-educado como ou até bem-educado como o caralho.
Nesse sentido, o caralho é um medidor universal de qualquer coisa. Digamos que tem, como vocábulo, uma amplitude... do caralho.
Já outros vocábulos, considerados também calão ou ordinarices, não têm a mesma dignidade. O órgão sexual feminino não é algo que esteja sempre a ser usado (já em espanhol é corrente dizer coño, porque por um daqueles acidentes linguísticos inexplicáveis, o sexo feminino em espanhol corrente é do género masculino e o masculino – polla – do género feminino).
Se em Espanha se pode dizer «Estoy de putamadre» – sem escandalizar excessivamente ninguém, nem a própria mãe –, em Portugal tal varia com a geografia. Tradicionalmente, o termo cabrão era muito usado no Alentejo e no Algarve, mas não no Norte. O contrário de «filho da puta». Nas aldeias da Beira ou Trás-os-Montes podia-se ouvir uma mãe chamar o filho com aqueles gritos longínquos: «Ó jaquiiiiiiiiiiiiiim, anda cá filho da puta!» No Alentejo era menos vulgar e até de mau gosto (assim como no Ribatejo e Lisboa, onde as mães, mesmo na metáfora, são sagradas). Mas em certas zonas, como no Algarve e partes do Sul, a expressão «filho da puta» podia ter algo de carinhoso.
Aliás, jamais esquecerei a lição que um camarada de profissão deu a um grupo de jornalistas quando um deles referiu alguém como filho da puta. Explicou o experiente repórter: «Filho da puta, não, que para isso é preciso ter classe. Ele é apenas um sacaninha.»
E A ARTE
Voltando ao caralho, porque este texto não pode ser grande como o citado, digamos que na poesia trovadoresca o termo já era usado. Curiosamente, é um termo exclusivo das línguas romanas da península, o que milita em favor da origem celta (os celtiberos ocupavam exclusivamente a Ibéria antes da chegada de fenícios e romanos). Não existe em mais nenhum idioma, nem no basco. Mas está presente com grafias diferentes no português, no galego, no castelhano e no catalão.
Pero Burgalês, em meados do século XIII, num poema que retrata uma velha ninfomaníaca, escreveu:
«Pois lhe nao non queren durar
E lh’assi morren a malfadada.
E un caralho grande que comprou
Oonte ao serao o esfolou
E outra pissa ten ja amornada»
Não foi o único. O galaico-português Martim Soares, nascido provavelmente em Riba de Lima na mesma época, criou uma figura que gozava com o já então célebre Sir Lancelote, personagem pura, imaculada e central da lenda do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. Imaginou, assim, D. Caralhote, em tudo contrário ao seu inspirador, que é aprisionado por uma mulher bastante dada:
«E a dona cavalgou e colheu i
Don Caralhote nas mãos; e ten,
pois-lo ha preso, ca está mui bem»
O espanhol Alfonso Alvarez de Villasandino, que terá morrido por volta de 1525 e é um dos autores mais representados no famoso Cancionero de Baena, escreveu os seguintes e ternos versos:
«Señora, pues que no puedo
Abrevar mi carajo
En ese vuestro lavajo»
(note-se que abrevar significa dar de beber, sobretudo ao gado, e lavajo uma espécie de charco que nunca seca)
A palavra, por esta altura, estava já em uso corrente. No Glosário de el Escorial define-se a palavra androgenus como «onbre que tiene conno et carajo»; já ermafroditus é definido como «onbre que tiene pixo et conno». Por último, a palavra pleplucium (prepúcio) como «capillo (capucho) del carajo».
Haveria ainda a registar toda a poesia erótica dos séculos posteriores ao XVI e até à nossa era, em que E. M. de Melo e Castro escreveu Cara lh amas chamando-lhe poemas eróticos e sarcásticos. Sendo escritos entre 1965 e 1975 e publicados neste ano revolucionário, a explicação era libertária: «A poesia erótica de E. M. de Melo e Castro canta a anti-renúncia, canta um compromisso livremente assumido. Situa-se para além da ordem, tanto na ordem repressiva, convencional, abstrata, despótica, como da ordem imposta à consumação sexual». Porém, apesar da teoria, nota-se certo comedimento, como em Alexandre O’Neil no célebre poema Aproveitando uma aberta, que escreve (...)
«eu quando digo mobília,
digo lar, digo família
e aquela espiada fresta,
aberta, patente honesta,
retrato oval da virtude
consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste» (...)
O tópico lá está, mas metaforizado em tom irónico... e genial, como é próprio de O’Neil.
Mais atrevido fora Bocage, embora atuasse em semiclandestinidade. O famoso poema erótico-pornográfico Soneto (despe)jado, é disso exemplo:
«Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe foi (oh céus) metendo
O meu caralho, que de amor fervia:
Entre o susto, entre o pejo a moça ardia;
E eu solapado os beijos remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:
Entra a vir-se a menina... Ah! que vergonha!
“Que tens?” – lhe diz a mãe sobressaltada:
Não pode ela encobrir na mão langonha:
Sufocada ficou, a mãe corada:
Finda a partida, e mais do que medonha
A noite começou da bofetada.»
E FALA-SE DISTO EM PÚBLICO?
A coisa é, pois, antiga e vulgar em todos os sentidos da palavra. A questão que se põe é qual a possibilidade de utilizar publicamente o vocábulo. Fala-se disso?
Eu falo (este trocadilho também é interessante) neste texto, pois não há outra forma de responder ao desafio dos diretores e editores desta Revista onde há mais de 27 anos desfio ideias, reportagens, entrevistas e o velho Comendador, que há de estar indignado com este outro eu.
E mostramos às filhas, às mães, às avós, aos netos? Pois isso depende da forma que o fizermos. O palavrão é gratuito se não passar de uma forma de ofender. Mas é enfático, como o de Éder ou amigável quando o utilizamos para caracterizar algo de nobre ou bom («Ronaldo dá dinheiro como o caralho para causas de solidariedade»).
É, ainda, educativo se formos à procura das origens das palavras, tantas vezes inocentes (como pequeno pau em caraculu) que desconstrói a ordinarice do vocábulo atual (o mesmo em puta, que significava em latim menina, como putus se referia a rapaz, de onde o nosso puto significar o mesmo).
De qualquer modo, como em tudo na vida, convém não abusar. O nobre e consolador pau, colérico em riste, já tem demasiada serventia para ainda ter de andar sempre nas bocas do mundo...
Cf.: Como inventar um palavrão?, 20 insultos inconvenientes (e pouco conhecidos…)
Texto transcrito, com devida vénia, do semanário Expresso de 31 de julho de 2016.