O tema das concordâncias, devido ao uso dos falantes, não é linear e tem-se revelado como uma das áreas críticas da nossa língua devido à complexidade das diferentes situações que têm surgido. Aliás, não é, decerto, por acaso que «uma parte importante das regras sintácticas da maioria das línguas consiste naquilo que podemos considerar por regras de concordância, [o que se deve ao facto de que] se diz que existe concordância entre duas expressões linguísticas quando elas possuem determinadas propriedades em comum e essa coincidência de propriedades é uma condição necessária para gramaticalidade do discurso» (João Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 449).
É de referir que os linguistas Peres e Móia, que dedicaram um capítulo (VII) às concordâncias na obra citada, não colocaram o caso de construções com o sujeito «a gente» como objecto de análise, do que se infere que não seja considerado como crítico/polémico. Através de três exemplos em que o sujeito «a gente» ocorre (para apresentar casos de «concordância de predicadores com complementos directos»), verificamos que o predicado se encontra sempre no singular, o que não deixa margem para dúvidas de que essa é a forma correcta e de que qualquer outra hipótese de concordância do predicado (no plural) com tal sujeito seria considerada como incorrecta ou agramatical (idem, pág. 448; o símbolo * indica frase agramatical):
«Toda a gente acha este rapaz simpático.»
«Toda a gente acha estes rapazes simpáticos.»
*«Toda a gente acha estes rapazes simpático.»
Repare-se que a agramaticalidade do último exemplo se deve apenas à falta de concordância do predicador («simpático») com o complemento directo («estes rapazes»).
Poderão as frases cujo sujeito seja «a gente» constituir casos de concordância lógica ou siléptica ou silepse, em que se aceitam outras construções diversas das gramaticais? Não se pode negar que não tenhamos ouvido frases como «A gente fomos ao cinema» em vez de «A gente foi ao cinema», em que foi assumido como sujeito um «nós» como «a gente», destacando a ideia de um grupo em que o emissor estava incluído.
De qualquer modo, apercebemo-nos de que na frase «A gente fomos ao cinema» não houve o respeito pela concordância do predicado com o sujeito, a concordância literal, o que a torna agramatical.
Sabemos, também, que «esta concordância nem sempre é realizada pelos falantes, sendo frequentes estas excepções e até desvios» (op. cit., p. 455), características atribuídas às concordâncias lógicas, silépticas ou silepses. Mas estaremos em presença de um caso «com graus de aceitação bastante varáveis», um requisito das silepses? A dúvida reside precisamente aqui: em que medida este desvio, esta fuga à regra das concordâncias gramaticais, é aceitável?
Segundo Rodrigues Lapa, há três motivos frequentes para situações de ausência de concordância literal: «um, que consiste em concordar palavras não segundo a letra mas segundo a ideia [concordância a que Bechara chama ad sensum, com o sentido, destacando a pluralidade da palavra]; outro, segundo o qual a concordância varia conforme a posição dos termos do discurso; e um terceiro que traduz o propósito de fazer a concordância com o termo que mais interessa acentuar ou valorizar» (Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa, Lisboa, Seara Nova, 1973, p. 211). Por isso, «este processo gramatical da concordância lógica, siléptica ou silepse, que faz prevalecer o conteúdo semântico das expressões sobre a forma morfológica, [prevê a aceitação] de formas alternativas» (Peres e Móia, op. cit., p. 449). Assim, por exemplo, quando «o sujeito é constituído por uma expressão partitiva (como: parte de, uma porção de, o resto de, metade de e equivalente) e um substantivo ou pronome plural, o verbo pode ir para o singular ou para o plural». (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 496):
«A maior parte deles já não vai à fábrica!» (Bernardo de Santareno, A Traição do Padre Martinho, p. 40)
«A maior parte destes quartos não tinham tecto, nem portas, nem pavimento.» (Camilo Castelo Branco, Obra Selecta, p. 196)
«Uma porção de moleques me olhavam admirados.» (José Lins doRego, Menino de Engenho, p. 29)
«Para meu desapontamento, a maioria dos nomes anotados não dispunha de telefone, ou eram casas comerciais, que não queriam conversa.» (Carlos Drummond de Andrade, A Bolsa & a Vida, p. 12)
No entanto, o caso de concordância com «a gente» não se encontra incluído na discussão/reflexão dos desvios da concordância siléptica por parte de Peres e Móia, pelo que se presume que estes nem considerem sequer a possibilidade de o verbo ocorrer no plural. Do mesmo modo — e sem deixarem de fazer referência ao facto de «no colóquio normal, [se] empregar a gente por nós e, também, por eu» (Cunha e Cintra, op. cit., p. 298) —, Cunha e Cintra defendem que «o verbo deve sempre ficar na 3.ª pessoa do singular» (idem), fundamentando-a com alguns exemplos comprovativos:
«Houve um momento entre nós/em que a gente não falou.» (Fernando Pessoa, Quadros ao gosto popular)
«A gente só queria gastar um bocadito de dinheiro.» (Fernando Namora, O Trigo e o Joio, p. 165)
«Você não calcula o que é a gente ser perseguida pelos homens.» (Ciro dos Anjos, Dois Romances, p. 41)
Obs.: Para uma maior reflexão, aconselha-se a leitura de algumas respostas em que o tema das concordância tem sido tratado, tal como Concordância total e parcial ou atractiva, de Edite Prada, Concordância siléptica e Concordância do verbo, ambas de José Neves Henriques.