À volta da silepse menos bem usada no português (mais) coloquial de Angola, nesta crónica do autor, publicada no semanário "Nova Gazeta" do dia 15 de maio de 2014.
«Aprendi a contar até dez, apesar de só ter nove dedos, que é para não cometer erros. Um erro em qualquer outro Governo é mais um erro. No nosso, não pode acontecer», disse Lula da Silva enquanto Presidente do Brasil.
Quando li esta frase achei interessante o facto de Lula apelar, por esta via, ao bom senso dos membros do seu Governo para uma governação justa, equilibrada, em que pudessem evitar erros desnecessários e transmitir algum conforto ao povo brasileiro.
Mas eu admirava-o, e ainda o admiro, pela forma espontânea, natural e, de certa forma, sem preocupação com que se comunica. Parece que o mais importante é que as pessoas percebam o que ele diz.
Os erros são para serem evitados sempre que possível, não apenas quando se está a governar, mas também noutras esferas da vida social. O modo como falamos diz muito sobre quem somos e, muitas vezes, como pensamos.
Daí que várias vezes sou questionado se é correcto dizer «a gente somos de Angola», ou «a malta vivemos aqui», porque muito boa gente, inclusive os que nos servem de modelo, apresentam um comportamento linguístico repudiável.
Se calhar, o que não ocorre na nossa ‘cachimónia’ é que deve haver uma diferenciação entre o nosso pensamento e o que deve ser gramaticalmente concordante. Ou seja, as palavras ‘gente’ (amplamente usada no Brasil) e ‘malta’ (também usada em Angola) apresentam-se no singular, mas referem-se à primeira pessoa do plural (nós).
No entanto, ‘gente’ e ‘malta’ devem concordar com a terceira pessoa do singular, apesar de fazer referência (no nosso pensamento) a mais de uma pessoa. É assim que devemos dizer «a gente vive aqui», que quer dizer «nós vivemos aqui», ou «a malta é de Caxito», que é o mesmo que “nós somos de Caxito”.
Essa concordância ideológica pode ser aceite, por alguns ouvidos mais ou menos sensíveis, em frases como «a malta é de Caxito, mas a nossa casa está em Luanda». Neste caso, estamos em presença de um outro verbo e houve uma transição de ‘gente/malta’ para ‘nós’.
Este fenómeno é conhecido como silepse e pode ser usado desde que a concordância ideológica não ocorra na mesma oração. «A gente vive na Bahia há dez anos. No próximo mês vamos mudar-nos para São Paulo».
in semanário Nova Gazeta, de Luanda, publicado no dia 16 de maio de 2014 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.