O topónimo Fátima usava-se com artigo antes dos acontecimentos que levaram à criação do santuário. Com efeito, dizia-se ou ainda se diz «vive na Fátima», o que de algum modo é comprovado pelo título de uma publicação local ainda hoje existente: A Voz da Fátima.
Trata-se de um uso por esclarecer, porque Fátima, como nome de lugar (topónimo), parece ter origem num nome próprio (o de uma filha de Maomé), que tem origem na palavra arábica fāṭ(i)má, «a que desmama (uma criança)»1. Geralmente, com topónimos com origem em nomes de pessoa (antropónimos), não ocorre artigo definido: assim acontece com os topónimos do norte de Portugal que têm origem em nomes de pessoa germânicos – Gondomar (Porto) ou Guimarães (Braga); ou com nomes do Sul que parecem ter origem em povoadores medievais – Fernão Ferro (Setúbal), Paio Pires (Setúbal), ou Martinhanes (Setúbal), este provavelmente de «Martinho Anes»2. Com estes topónimos, diz-se, portanto, «moro em Gondomar/Guimarães» e «vivo em Fernão Ferro/Paio Pires/Martinhanes».
Observe-se, contudo, que o uso de artigo definido encontra exemplo paralelo na ilha de Maiorca, nas Baleares, onde se assinala um lugar chamado «puig de na Fàtima»3 (no catalão da região, o mesmo «monte da Fátima»), em que «na Fátima», com o artigo definido na, usado antes de nomes próprios femininos, é literalmente «a Fátima».
Além disso, parece haver elementos indicativos de que, no centro e sul de Portugal, entre as populações falantes de árabe ou a ele expostas, fátima já se usou como nome comum, o que já poderá justificar o uso do artigo definido. Foi o que propôs há mais de duas décadas o historiador Almeida Fernandes num comentário ao topónimo Fátima4 , quando declarou não achar que se tratava de nome pessoal. Argumentava ele com o caso de Fátimas (distrito da Guarda), topónimo que se usa com artigo definido («as Fátimas»), como se lê na seguinte citação (sublinhado nosso):
«De facto, o caso de «as Fátimas» no c. de Almeida – note-se o artigo –, dois cabeços, impressivos na paisagem chã da localidade, mostra perfeitamente a metáforatopográfica, como se dois mamilos, documentando-se o mais alto (pouco mais, mas de facto mais) em 1212 "per cabezam de Fátima". Portanto, de acordo com o étimo de Fátima referido [ver acima] e com o sentido translato da designação pessoal, de mulher ("a que desmama", embora ao inverso, para "mama"), tudo leva parao topográfico, metafórico. Concorda com Alfátima = al Fátima, outro cabeço, no c. Gouveia (com al arábio condicente com Fátima, sendo de não esquecer o caso em epígrafe, "a Fátima", como não há muito se dizia e não sei se já se deixou de dizer pelo referido cultismo pretensioso e falaz da via religiosa).»
Ou seja, Almeida Fernandes confirma que tradicionalmente o topónimo em apreço tinha artigo definido: dizia-se «a Fátima» e, como assinala o consulente, ainda se escreve hoje assim, corretamente. No entanto, a formalidade e solenidade que competiam ao lugar devem ter pesado na mudança que leva atualmente Fátima a ocorrer sem artigo definido («o santuário de Fátima»).
1 Cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Lingua Portuguesa, s.v. Fátima. Este autor considera que o topónimo tem origem no antropónimo mencionado, que era e é popular no mundo de língua árabe. O nome do lugar pode, portanto, relacionar-se com o de uma mulher assim chamada, mas não há fontes que esclareçam as causas do uso toponímico.
2 Cf. F. Marsà, F. "Toponimia de Reconquista" in M. Alvar et al. Enciclopedia Lingüística Hispánica, vol. I, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1960, p.637-638.
3 R. Pocklington, "Nombres propios árabes y bereberes en la toponimia andalusí", Alhadra. Revista de Cultura Andalusí, vo. 3, 2017, p. 89. Note-se, porém, que o topónimo maiorquino também aparecesem artigo definido sob a forma Puig de Fàtima.
4 Cf. A. Almeida Fernandes, Toponímia Portuguesa. Exame a um Dicionário, 1999, p. 293.