Há mais de vinte anos que passo férias na parte antiga da vila de Alvor (Algarve, Portugal) e constato, em boa parte das ruas, a existência de duas toponímias. A mais recente e a mais antiga. Ambas presentes nos painéis de azulejo que identificam os nomes das ruas.
Alvor tinha uma toponímia estreitamente ligada às características do local: topografia, edifícios marcantes, santos de devoção das populações, actividades locais. Nela a população reconhecia a vila e reconhecia-se. Os nomes das ruas eram parte da sua identidade. A dado passo da sua história, as estruturas autárquicas decidiram alterar os nomes das ruas, atribuindo-lhes novos nomes sobretudo ligados a figuras e factos históricos do passado português. Tratando-se de uma mudança artificial e forçada, e como provavelmente a população não se reconheceria facilmente nos novos nomes, nos painéis identificativos convivem novas e antigas designações. Ou seja, Rua X (antiga Rua Y).
Uma das artérias estruturantes da vila que literalmente a atravessa é composta sobretudo por duas ruas, hoje a Rua Marquês de Pombal e a Rua Dr. Afonso Costa. Antes chamavam-se, respectivamente, Rua Abaixo e Rua Acima. Quem por ali passe e veja o constante passadio de gentes para cima e para baixo e o some com a morfologia do local facilmente intui a precisão dos antigos topónimos.
Outro caso é o da Rua Vasco da Gama, que desemboca num local fundamental da vila, a chamada Ribeira, junto à ria e à antiga lota. Chamava-se precisamente Rua da Ribeira e ainda hoje dela se divisa parte da Ribeira. A zona da Ribeira, que deve o seu nome ao facto de ali confluírem várias ribeiras, em particular a ribeira do Farelo, ainda hoje lugar central do que subsiste da faina piscatória da vila, e também local de encontro e de socialização, que todos os autóctones reconhecem como tal, não tem sequer um nome de rua, mas apenas de uma travessa e de um beco! Com intuição e oportunidade, um dos muitos restaurantes da zona ribeirinha, o Restaurante A Ribeira, tomou-lhe o nome que a toponímia oficial secundarizou.
Historicamente, Alvor foi sobretudo uma vila piscatória. Não tem, também por isso, verdadeiramente praças. Há, porém, um pequeno largo que tem ao centro a Igreja da Misericórdia. Chamava-se singelamente Praça. Agora chama-se pomposamente Praça da República. Admitindo-se que Praça pudesse sofrer algum acrescento, porque não, por fidelidade ao local, Praça da Igreja da Misericórdia?!
Um outro caso bizarro é o da antiga Rua do Areeiro, hoje Rua Dr. António José de Almeida. É que se acabou com a Rua do Areeiro, mas manteve-se, na mesma rua, a Travessa da Rua do Areeiro! No dia em que as placas de azulejo perderem a antiga toponímia ou se apenas se consultar um mapa, fica-se sem perceber a razão da existência de uma travessa de uma rua que já não existe!
As mudanças não apenas alteraram as designações antigas como, pelo menos num caso, as reaproveitaram. É o que acontece com a antiga Rua da Igreja, agora chamada Rua 25 de Abril. Deve o seu nome ao facto de, em toda a sua extensão, se divisar grande parte do conjunto de edifícios da igreja matriz de Alvor e parte do adro. Por sua vez, a antiga Rua de S. João foi rebaptizada como Rua da Igreja, porventura por nela se situar o pórtico principal da mesma e nela existir uma escadaria que dá acesso ao adro. Pode, à primeira vista, parecer que se justifica, mas num olhar atento do lugar facilmente se percebe que não. É que o pórtico da igreja fica situado lateralmente num cotovelo da rua que termina num caminho escalavrado e os acessos pedonais à mesma continuam a fazer-se maioritariamente pela antiga Rua da Igreja, actual 25 de Abril, como se constata pela saída dos fiéis de uma qualquer cerimónia religiosa! A centralidade da igreja reside no adro e não no pórtico.
Um dos raros casos que encontrei e que eventualmente poderia justificar a alteração é o da antiga Rua do Paço, que agora se chama Rua D. João II, por nela ter existido o Paço do Alcaide-Mor de Alvor, D. Álvaro de Ataíde, no qual veio a morrer, em 1495, o rei D. João II. Com alguma estranheza, indo-se buscar nomes sem qualquer ligação à vila, deixaram-se de fora outros com alguma. O rei D. Dinis, por exemplo, que reconstruiu o pequeno castelo árabe local – de que ainda resta parte das muralhas e de que existe um largo, uma rua e uma travessa com a designação de Castelo – não é sequer referenciado na toponímia da vila.
Os exemplos em desfavor da nova toponímia poderiam multiplicar-se. A meu ver, esta associação à vila, através da atribuição das designações das ruas, de nomes de personagens e factos de inegável ressonância histórica, mas presentes em inúmeras cidades e vilas portuguesas, em lugar de lhe conferir nobreza e importância, descaracteriza-a e retira-lhe a autenticidade dos nomes originais, filiados directamente no seu passado e inteiramente ajustados às características do lugar.