A palavra cara-metade não é uma criação portuguesa. Na verdade, terá surgido em contexto erudito, talvez de língua francesa, donde passou ao castelhano e ao português. É também muito provável que a expressão reflita certa visão mitológica sobre o par amoroso ou conjugal.
Apesar dos registos dicionarísticos1, as entradas de cara-metade não facultam informação histórica. Sendo assim, impõe-se a pesquisa em coleções textuais que abranjam várias épocas, como é o caso do Corpus do Português (Mark Davies), cuja secção histórica permite observar que a atestação mais antiga é de 1845, de uma obra intitulada As Casadas Solteiras, do escritor brasileiro Luís Carlos Martins Pena (1815-1848):
(1) «Ora, já não posso aturar a minha cara-metade. O que me vale é estar ela há mais de duzentas léguas de mim.»
Contudo, importa assinalar que, em espanhol, se regista a expressão equivalente cara mitad, por exemplo, no dicionário da Real Academia Espanhola (DRAE). O significado é o mesmo que em português, como confirma Xavier Pascual López (Fraseología española de origen latino y motivo grecorromano, Universidade de Lérida, 2012, p. 239)2:
«Asimismo, se documenta la locución nominal cara mitad (‘marido o mujer, consorte’, DRAE s. v. mitad), en la que se reproduce [la imagen de un único ser (esférico, icono de la perfección) dividido en dos partes que, aunque puedan encontrar parejas similares, sólo pueden encajar con su mitad originaria] y cuyo sentido se restringe al matrimonio, incidiendo – conforme también a la moral cristiana – en que la pareja constituye dos partes de un todo indisoluble, pero presentando, gracias al adjetivo cara, la especificidad de vincularlo con el afecto [...].» [tradução livre: «Também se documenta a locução nominal cara mitad (marido ou mulher, consorte, DRAE s.v. mitad), com a qual se reproduz a imagem de um único ser (esférico, ícone da perfeição= dividido em duas partes que, embora possam encontrar pares similares, só podem encaixar com a sua metade originária e cujo sentido se retringe ao matrimónio, incidindo – em igual conformidade com a moral cristã – na ideia de que o casal é constituído por duas partes de um todo indissolúvel, mas apresentando, graças ao adjetivo cara, a especificidade de vincular esta relação ao afeto.»]
Por outro lado, no Corpus do Diccionario Historico de la Lengua, observa-se que a ocorrência mais antiga de cara mitad é de 1828. Dado esta atestação preceder a atestação portuguesa citada em (1), seria lícito supor uma origem espanhola em relação a cara-metade ou, pelo menos, pensar que as duas expressões tivessem sido criadas num ambiente ibérico diverso linguisticamente mas favorável a contactos culturais estreitos, a ponto de surgirem palavras semelhantes ou decalcadas quase em simultâneo, quer em Espanha quer em Portugal.
Contudo, a consulta do Trésor de la Langue Française atesta um uso francês – chère moitié, num texto literário de 1610, de Antoine Montchrestien (1575-1621) – que é réplica exata de cara-metade e cara mitad. A mesma fonte indica que esta expressão emergiu por alusão ao mito do Andrógino conforme Platão o explorou em O Banquete. Acresce que, em italiano, igualmente se deteta o uso de uma locução equivalente: «la mia dolce, cara metà» (s.v. metà, Dicionário Italiano-Português da Infopédia; ver la dolce metà também no dicionário Treccani, s. v. metà).
Em conclusão, a palavra cara-metade constitui a sobrevivência de uma expressão que andou em circulação nas línguas europeias – pelo menos, entre as românicas ocidentais, ou seja, o italiano, o francês, o castelhano e o português.
1 Cara-metade é um nome composto de cara («querida») e metade, que se escreve com hífen e tem entrada própria em vários dicionários: Infopédia, Priberam, Academia das Ciências de Lisboa, Houaiss, Michaelis, Aulete. Significa (ou significou) «a esposa (para o seu marido)» e, por extensão de sentido, «o parceiro amoroso com quem se pode encontrar mais afinidades». Há quem veja cara-metade como um composto de cara («rosto») e metade, numa análise que será reinterpretação mais tardia, aparentemente sem apoio na história da palavra.
2 José Luis García Remiro ("De cómo la vida monástica impregnó el lenguaje del pueblo con formas de hablar y expresiones que todavía perduran en nuestro idioma", pp. 209-242) observa: «La costilla de Adán Para referirnos, en tono familiar y algo zumbón, a la esposa, decimos “mi costilla, mi cara mitad, mi media naranja...”, evitando así denominaciones más serias y burocráticas. Lo de media naranja, cara mitad alude a la unidad natural del matrimonio. Es el “dimidium animae meae” de los latinos. Lo de la costilla de Adán hace referencia al relato bíblico sobre nuestros primeros padres en el que se nos cuenta que Eva fue formada de una costilla de Adán. (Génesis 2, 18-22).» Ver também Mª Ángeles Calero Fernández, "Vestigios de diferencias de género en el léxico español del matrimonio" in En femenino y en masculino, Madrid, Instituto de la Mujer (Ministerio de Trabajo y Asuntos Sociales), 1999, p. 55: «[...] la esposa constituye una parte del marido, lo que también se destaca en la expresión cara mitad, en la que, además, detectamos fácilmente el pensamiento cristiano que defiende que la pareja casada constituye dos partes de un todo indisoluble (si bien en ciertas épocas la Iglesia –y aun hoy bajo ciertos supuestos– ha admitido la ruptura de la unión matrimonial); el adjetivo cultocara (‘querida’) que presenta esta locución nos aproxima al mundo de los afectos, que no es frecuente en las designaciones españolas relativas al matrimonio y a los cónyuges.»