« (...) Esse fenômeno fonológico é conhecido pelos linguistas como "prótese do a". (...)»
Eu me alembro bem do meu vô Francisco dizer «eu me alembro». Ele me amostrava umas fotos antigas e me contava da época em que amontava seu cavalo e saía avoando pelas estradas. O vô se assentava na cadeira e depois se alevantava, ia "arresorver" umas coisas na cidade. Ele até se apercebia dos demais arremedando seu jeito de falar, mas ele não se avexava. Aí que arrepetia mesmo.
Ele morou um bom tempo no município de Jussara, no Paraná, na década de 50. A frase clássica que não me esqueço é de ele afirmar com orgulho: «"Foi" eu quem ajudou a "afundar" Jussara!» Ô, meu vô...
Seu Francisco era um sertanejo e como todo sertanejo o acréscimo de um a nos verbos era uma de suas marcas. É, aliás, uma das várias características do dialeto caipira e do nordestino. Luiz Gonzaga, em "Juazeiro" (1948), apresentou duas dessas na letra: «Juazeiro, juazeiro,/ me arresponda, por favor» e «Juazeiro, não te alembra/ quando o nosso amor nasceu».
Mas e aí, está correto isso? Muita gente culta diz que avoar é errado e que o certo é voar. Alevantar seria coisa de roceiro; aperceber seria da fala do iletrado. Xi! Assossegar é menos preferível que sossegar? Pois eu lhe "agaranto" que não é bem por aí...
Esse fenômeno fonológico é conhecido pelos linguistas como «prótese do a». Prótese vem do grego antigo próthesis, que significa «colocado adiante». Na Medicina, é a adição que supre algo faltante. Na Linguística, é a adição dum som no início dum vocábulo. Adiante, por exemplo, é formado por um a protético e diante. Assim foi com abaixo, acima, adentro e afora.
Inúmeros verbos foram criados pela prótese do a. Tornar da cor vermelha: avermelhar; tornar manso: amansar; tornar calmo: acalmar; [...] ser padrinho: apadrinhar.
O morfema a- vem do latim, língua em que o prefixo ad- significa «aproximação, tendência». Adnubilare → anuviar; adpacificare → apaziguar; adnunciare → anunciar; adbracchiare → abraçar. Nalguns casos, o d permaneceu: admirare → admirar; administrare → administrar; admittere → admitir.
No português arcaico (ou galego-português), a prótese do a continuava firme até mesmo com verbos que já existiam sem a vogal no início. No século XIII, tínhamos baixar (do latim vulgar bassiare), mas também se registrava abaixar. Os dois seguem até hoje.
As formas com e sem a- competiam entre si. Dormir e adormir nasceram juntas, mas adormir quase não se usa mais. O mesmo aconteceu a fumar, que ganhou de afumar. Havia adeitar/deitar e arrezar/rezar, mas as formas protéticas não foram para frente. Ateimar (de 1678) perdeu espaço para teimar (de 1721). Fatiar apareceu em 1553 e está conosco até hoje; afatiar, de 1871, mal é lembrada. Amurar (1913) não venceu murar (séc. XV) na predileção da população.
Outras vezes, a forma com prótese do a é que foi a preferida, como aconteceu com assinalar, que ganhou de sinalar, e aterrorizar que desbancou ‘terrorizar’. Garrar’ é do século XVI; mas ‘agarrar’, do XVII, é que teve mais ibope.
Muitos verbos surgiram com a prótese do a e não contam com a versão sem, como amanteigar (1619), assustar (1655), aleitar (1858) e avacalhar (1949). Ainda que o sujeito faça uma trapalhada, o único verbo que temos é atrapalhar.
Temos hoje palavras com o mesmo significado, com ou sem o a: acostumar/costumar, assoprar/soprar, avexar/vexar, aquietar/quietar, arrebanhar/rebanhar, assombrear/sombrear, abalançar/balançar, ajuntar/juntar. Noutros casos, o a muda o sentido: aparecer/parecer, abancar/bancar, acancelar/cancelar, alistar/listar.
Num movimento contrário (chamado aférese), também costumamos retirar o a protético original: «me esqueci de "rancar" o prego», «ele "podreceu" na cadeia», «tem que "frouxar" o parafuso», «é bom parar de "maldiçoar" os inimigos».
Apontamento do professor universitário e divulgador de temas linguísticos brasileiro Rafel Rigolon, transcrito, com a devida vénia, do mural Língua e Tradição, disponível no Facebook (24 de fevereiro de 2024).