Se o léxico de uma língua é um sistema dinâmico, isto é, se se caracteriza pelo movimento, importa esclarecer como é visualizada a relação entre um léxico com essas características e um dicionário, produto acabado e, por natureza, entidade estática.
Para o fazer, importa responder a algumas perguntas e desmistificar algumas ideias feitas sobre os dicionários:
1. Até que ponto é que o dicionário determina o que pertence e o que não pertence às línguas?
2. Até que ponto os dicionários têm poder regulador dos usos da língua?
3. Até que ponto o dicionário é o detentor absoluto da verdade?
1. Dicionários e "certidão de nascimento" das palavras
Por definição, o léxico de uma língua, enquanto conjunto de todas as unidades lexicais que dela fazem parte, é uma entidade dificilmente definível em extensão, isto é, não sabemos exactamente quantas palavras dele fazem parte.
Porquê?
De entre as múltiplas razões que podem ser invocadas, destacar-se-ão três, que parecem suficientemente significativas.
Em primeiro lugar, porque do léxico fazem parte não apenas todas as palavras que alguma vez foram usadas nesta língua (incluindo neste conjunto os milhares de arcaísmos que já ninguém conhece), como todas as palavras que, por necessidades denominativas ou por outras razões, vamos criando no dia-a-dia.
Em segundo lugar, porque nem todas as palavras de uma língua têm a mesma frequência de uso. Há palavras que são muito, muito usadas e que, como tal, ninguém espera que não apareçam registadas num dicionário: imagine-se a reacção de um consulente que, pegando num dicionário de português, verificasse que esse dicionário não continha palavras como casa, mãe, correr, ser, feliz, belo, hoje, amanhã, ou mesmo de, que, a (paradoxalmente, o utilizador corrente do dicionário não irá, seguramente, ao dicionário procurar os artigos dedicados a estas palavras!). A par destas, existem palavras cujo uso é tão raro (porque pertencem a registos linguísticos muito, muito restritos e/ou especializados) e que, dado que os dicionários são listas finitas de entradas, ficam de fora – estou a lembrar-me de uma palavra como egrégora, que, precisamente pela sua raridade, provocou alguma controvérsia no Ciberdúvidas (Cf. Ainda a propósito de egrégora).
Finalmente, existem palavras que são tão transparentes, tão transparentes, que não carecem de ser dicionarizadas, dado que qualquer falante da língua, recorrendo à sua competência lexical e morfológica, consegue construir e/ou compreender sem sequer se aperceber de que está perante uma palavra "nova". Pense-se no caso de muitos adjectivos construídos com recurso ao sufixo –vel, ou nos advérbios construídos com recurso ao sufixo –mente [enquanto escrevo, o corrector ortográfico assinala como erros embrulhável, preparável, acondicionável, conversacionalmente, inconstrutivamente, elefantescamente, palavras cujo significado qualquer falante poderia descodificar e que, com alguma probabilidade, já usámos alguma vez].
Em suma, o facto de uma palavra não se encontrar registada mesmo num grande dicionário de língua não significa, de modo nenhum, que a palavra "não exista". Significa, pura e simplesmente, que, por qualquer razão, alguém não a registou como tal. Penso que em meados da década de 90, nenhum dicionário português registava a palavra esferovite: será que, por esse facto, ela não existia?
2. Dicionários e "lei"
Uma das questões a que é preciso responder é a de saber se os dicionários que temos e usamos são descritivos ou normativos.
Dir-se-á que um dicionário é descritivo se o seu principal objectivo for descrever as palavras e o seu uso tal como ele acontece. Por seu turno, dir-se-á que um dicionário é normativo se for o seu principal objectivo determinar quais os usos das palavras considerados "correctos" num determinado momento, isto é, os usos aceites pela norma, entendida como o registo linguístico que, por factores históricos, culturais, sociais e até económicos, é "escolhido" para representar o "bem-falar" de uma língua [o meu corrector também assinala bem-falar como erro!].
Um dicionário descritivo tem, então, o dever de dar conta dos usos que efectivamente se fazem das palavras. Assim sendo, um dicionário com vocação descritiva deverá inserir palavras do calão, palavrões, palavras que denotam preconceitos raciais, sexuais, ou outros, desde que se considere que os falantes da língua usam, de facto, essas palavras da forma como são descritas. Em suma, um dicionário descritivo não pode falsear a língua. É nesse sentido que entendo que o dicionário tem de dar conta do facto de usarmos o composto sexo forte para denominar o sexo masculino e sexo fraco, para o sexo feminino.
Um dicionário normativo é aquele a quem foi legalmente atribuída capacidade legal para determinar os usos tidos como correctos de uma língua. O que acontece em Portugal, porém, é que a estandardização do falar é feita pelo uso, pelo acordo tácito entre os falantes. Por outras palavras, em Portugal, estamos perante uma situação de normalização, e não de uma situação de normativização [cá está outra palavra que o corrector não reconhece!]. No Brasil, a situação é diferente: tendo o Dicionário Houaiss a chancela da Academia Brasileira de Letras, ele institui a norma brasileira de jure e de facto.
Assim sendo, o nosso Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (vulgo, Dicionário da Academia) é, também ele, um dicionário descritivo e não um dicionário normativo. Assim sendo, é perfeitamente legítimo que este dicionário tenha registado como entrada a forma bué [esta também não é reconhecida], de que tanto se falou, dado que ela é uma palavra efectivamente usada actualmente pelos jovens portugueses (e até por pessoas menos jovens) e que o dicionário tem de ser verdadeiro em relação ao seu objecto de trabalho. Já o que é bastante menos aceitável é que, por um lado, bué não tenha nenhuma marca de uso, o que faz com que tacitamente o dicionário nos deixe perceber, erradamente, que a palavra não pertence ao calão ou à gíria dos adolescentes, e que, portanto, pode ser utilizada em qualquer situação de comunicação, e que, por outro, a descrição que nos fornece desta forma, quer como adjectivo quer como advérbio, não corresponda, a meu ver, ao uso efectivo que se faz dessa palavra.
Assim sendo, nenhum dicionário português tem competência legal para determinar o que é ou não correcto dizer-se. Não se quer, porém, com isto dizer que devamos ignorar as suas descrições. Os dicionários são, em princípio, feitos por especialistas, com formação específica, conhecedores da norma, que trabalham com seriedade, e, como tal, é importante, mesmo fundamental, que utilizemos estes produtos para esclarecermos as nossas dúvidas. Essa utilização, no entanto, não pode ser cega e carece de algum distanciamento.
3. Dicionários e “verdade”
É muito frequente usar-se o dicionário como "manual de tira-teimas". O que está no dicionário é verdade, o que não está é mentira.
Antes de mais, os dicionários são feitos por seres humanos e, como tal, estão sujeitos a erros, como qualquer obra humana. Lembrem-se a este respeito as muitas gralhas e até erros de descrição assinalados ao Dicionário da Academia. Mas também outros dicionários contêm erros – é inevitável.
Porém, há um outro aspecto pelo qual os dicionários são falíveis: a competência lexical de cada falante de uma língua é diferente da competência lexical de qualquer outro falante da mesma língua. Isto significa que não há dois falantes que conheçam exactamente as mesmas palavras, que as usem exactamente da mesma maneira, dado que o saber lexical de cada indivíduo, embora apresentando regularidades que são comuns a todos os falantes (precisamente por serem aspectos regulares), é fortemente determinado pela história pessoal do indivíduo, o seu sexo, idade, profissão, os seus interesses, os seus gostos, o tipo de educação que recebeu, etc. Assim sendo, é natural que os dicionários reflictam, frequentemente, algumas diferenças em relação ao uso que fazemos de certas palavras. Tome-se como exemplo o caso da palavra colãs [mais uma palavra não reconhecida, aqui seguramente por razões ortográficas], registada no Dicionário da Academia, que, embora apareça categorizada como substantivo masculino plural, pode também ser usada como substantivo feminino – os colãs/as colãs, qual prefere?
Os dicionários são instrumentos imprescindíveis na sociedade em que vivemos, para o ensino e a aprendizagem das línguas, para regular os usos das palavras, para auxiliar os profissionais, para esclarecer dúvidas, etc. Quanto a isto, que não fique qualquer dúvida.
Porém, perante o paradoxo de, sendo objectos estáticos, terem por missão descreverem um objecto dinâmico, é claro que os dicionários têm de apresentar, forçosamente, inúmeras limitações.
É com este espírito, então, que devem ser usados.
Mea Culpa
«No Brasil, a situação é diferente: tendo o Dicionário Houaiss a chancela da Academia Brasileira de Letras, ele institui a norma brasileira de jure e de facto.»
O excerto assinalado contém incorrecções que importa emendar.
O Dicionário Houaiss não tem a chancela da Academia Brasileira de Letras. Embora Antônio Houaiss tenha sido Presidente da Academia Brasileira de Letras, o dicionário não tem a chancela desta instituição. Os seus direitos autorais pertencem ao Instituto Antônio Hoauiss, que é uma entidade privada.
O estatuto normativo do Dicionário Houaiss não se confirma. Trata-se, sim, de um dicionário basicamente descritivo, embora com preocupações normalizadoras. No «Prefácio» do próprio Antônio Hoauiss pode ler-se: «Face à diversificação regional da lusofonia, do mesmo modo que reconhecemos a nossa regionalização [...] também preconizamos um português lusofônico, buscando evidenciar a compatibilização possível entre a norma culta do Brasil com a de Portugal e as emergentes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - os chamados PALOP.» O "dicionário normativo", tal como é apresentado no texto, é representado pelo "Diccionari de la Llengua Catalana"(Institut d’Estudis Catalans (1995). 1 vol. Barcelona, Palma de Mallorca, València: Edicions 3 i 4, Edicions 62, Editorial Moll, Enciclopèdia Catalana e Publicacions de l’Abadia de Monserrat). Esse estatuto é-lhe conferido pela interpretação da Lei de 24 de Abril de 1991 do Parlamento da Catalunha, segundo a qual é reconhecido unanimemente que o Institut d’Estudis Catalans é «la institució encarregada d’establir i actualitzar la normativa lingüística del català» e que todas as instituições administrativas radicadas na Catalunha devem «respectar la normativa establerta per l’Institut d’Estudis Catalans».