«Vá lá, escreva o meu nome», disse a dona Teresa, uma vizinha do bairro, no café, quando lhe expliquei que não, o arménio não era uma língua latina, não tinha nada em comum com o português, e que até os alfabetos eram diferentes. Não acreditou e pediu uma prova. Então, peguei na caneta e, em três segundinhos, desaportuguesei-a no guardanapo. Tirei dela toda a sua "teresidade". Escrevi assim:
Թերեզա
«Isto é Teresa?»
É, sim, senhora. Teresa arménia.»
«Esquisito», disse só.
Tinha toda a razão, a Dona Teresa. É esquisito também para mim. Eu, que a Dona Teresa conhece como Raia, mas que nasci Ռայա, vivi Ռայա e achava que ia morrer também assim. Mas veio um dia, passados já dois anos, um pouco mais, quando abri os olhos e depois a janela, e tudo à minha frente estava em latim. Fiquei assustada e saltou-me um grito boca fora. Rezava assim, o grito: «aaaaa». «Estranho», pensei. Toda a minha vida as pessoas gritavam assim:
աաաաա
Passaram já dois anos, um pouco mais, e aprendi algumas palavras. Eis o meu vocabulário: um, dois, três, e «olá, meu amor». «Queria um abatanado, se faz favor.» Depois agradeço. Tenho um caderno onde guardo essas frases todas. Escrevo lá os vossos ás e bês e cês e assim, até aos zês, nas combinações diferentes, para formar palavras, para depois me lembrar, para formar frases e impressionar as Donas Teresas dos cafés. Como qualquer coisa escrita, o meu caderno está cheio de mentiras.
Vejam na primeira página: «Sou a Raia. Sou da Arménia.» Mas na Arménia não houve nenhuma Raia. Houve só Ռայա. Formou-se em jornalismo. Sabia poemas de cor. Tinha opiniões sobre tudo. E tinha palavras para expressar as opiniões sobre tudo. Mas não podia fumar em família. Sofria. Tinha uma família tradicional. Não gostava disso. Não gostava também de nunca ter visto o mar. Não gostava que os arménios só falassem de guerra e fugiu por isso para Portugal. Morreu assim Ռայա, que descanse em paz.
Outra frase:
«Hoje o tempo está bonito. Finalmente fez sol.»
Mas cada vez que dizia isso à Dona Teresa, transformava a frase:
«Hoje o tempo está bonito. Finalmente ըըըըըըըը fez ըըըըըը sol.»
ըըըըըը era o pensamento. Era o mmmmm. Preenchia o silêncio enquanto pensava se o sol “fiz” ou “fez”. Foram bons os dias em que “fez”. Chorava nos dias em que “fiz”. Não era culpa do sol, era minha. Fiz um erro. Ou “fez”?
Passaram já dois anos, um pouco mais, e agora tanto me fաz. Sei dez palavras e não preciso de mais. Sou uma palerma. Bebo o meu café, fumo o meu cigarro e às vezes vou para o mar. A vida é boa quando não conheces as palavras certas para falar das coisas más.
N. E. – No texto, nas grafias em alfabeto arménio, assinale-se que Թերեզա apresenta Թ = T (maiúsculo), ե = e, ր = r, զ = s, e ա = a. Quanto a Ռայա, Ռ = R (maiúsculo), ա = a e յ = i. A sequência աաաաա , com a letra ա é, portanto, equivalente a «aaaaa». Quanto à sequência ըըըըըը, em que ը equivale a um "a" fechado, como o "a" de para, conforme se pronuncia em Portugal, mantém-se a opção da autora na sua representação do português, que é a de usar "mmmmm", para representar o som produzido quando há hesitação e se buscam palavras. Finalmente na forma híbrida “fաz”, ocorre um ա, ou seja, mais uma vez, a letra arménia correspondente ao a do alfabeto latino.