Se há uma idiossincrasia dos jovens portugueses que abomino é o nível da aprendizagem do inglês e a prontidão em trair a língua-mãe em favor dele. No momento em que o til do teu “ã” sai pela boca em vez do nariz, tornam-se espertalhões anglicistas, armados contra o Camões, “marchar, marchar”! E quando dizes que queres praticar o teu português, atacam de volta e ripostam com «mas eu também quero praticar o meu inglês!».
Acontece isto comigo com uma frequência irritante, entre os amigos, colegas e às vezes nos cafés. Começo os pedidos sempre com um «muito boa tarde» – muito dá um tom local, abraça e protege a boa tarde dos estrangeiros –, peço um cafezinho cheio e, quando tento adicionar o «se faz favor», a língua dá uma curva errada, revelando a minha identidade verdadeira. A má dicção é a maldição, que imediatamente quebra o encanto: a conta torna-se bill, ao pastel de nata adiciona-se uma camada de abacate, aparecem da escuridão as pegadas brancas do leite de aveia em cima do meu café, tão claras, que consigo ver nelas a minha cara, toda à banda e alheada.
Não culpo os portugueses. Com a enorme quantidade de turistas, é claro que esperam que se saiba algumas frases em português e nada mais. Mesmo assim, deixa-me danada que, depois de um erro inocente, nenhuma palavra catita os pode convencer de que esse “um café e pastel de nata” não é um ato performativo, mas sim quotidiano. E a situação dura repete-se já há quase dois anos.
Tudo começou quando me mudei para Lisboa, em setembro de 2022, para fazer o doutoramento e me instalei num prédio cor-de-rosa dos anos 50 no centro de Arroios, na Almirante Reis. Vivíamos num T3, no rés-do-chão, eu, a rapariga punjabi e a mãe dela – uma mulher de poucas palavras inglesas e até menos portuguesas. Sabia apenas dizer «o lixo» e, quando me queria pedir que o deitasse fora, usava a frase mais cosmopolita possível, «Raya, lixo, outside», pondo uma única palavra portuguesa entre uma estrangeira e um estrangeirismo. Eu, na altura, já tinha estudado português há meses, e estava bastante dentro do assunto para perceber que outside é algo de fora e não existe neste país!
Protestando, ao invés de sacos com lixo, deitei as minhas ilusões de aprender português em casa. Tentei na universidade, mas só ensinavam aulas do nível A1 (se, pelo menos, fosse o Ã1, com til, iria). Todos os amigos que fui fazendo dominavam o inglês. Com a mudança, fiquei sem dinheiro para pagar ao meu professor que me dava aulas particulares. E, tristonha, choramingando, decidi tentar o método de Kató Lomb, a poliglota húngara que aconselha ler literatura na língua estrangeira até perceberes a sua lógica; foi então que pedi um livro emprestado a um amigo e meti-me na pastelaria ao pé da minha casa.
Fazia essa rotina diariamente, dedicando-lhe uma hora de manhã. Sentava-me na esplanada, tentando decifrar todas as palavras desconhecidas. Mas foram as caras desconhecidas que roubaram a minha atenção. Imediatamente, senti a hierarquia de café, e parecia-me um filme norte-americano dos anos 90 para os adolescentes, mas com idosos reformados como as personagens principais. Havia sempre as mesmas pessoas, nos mesmos lugares, em grupos que nunca se misturavam. Havia também eremitas, demasiado bons para se incluírem em “chavaladas”. Eu também parecia uma eremita. Sempre sozinha, pedia um cafezinho com pastel de nata e agradecia com um “obrigadíssima”. O empregado de mesa repetia que era um prazer servir-me e a cada dia adicionava acrescentava mais elogios. Eu juntava a canela ao pastel de nata, comia-o e continuava a ler.
Passou assim tranquila uma semana da minha odisseia “lusocafetalista”. Mas, um dia, quando cumpri o ritual de novo, polvilhando a canela no pastel de nata, um homem, que estava sempre lá, quebrou o seu silêncio e declarou em altíssimos brados:
– A canela é inútil! Não dá sabor, só cheiro! Isto da canela nunca vou perceber.
Fiquei sem palavras. As do livro que tinha destacado de manhã tentaram escapar para fora e salvar-me, mas eram todas sobre amor e Deus. Eu não amava a canela, nem via Deus nisso. Só gostava do sabor que, de repente, descobria ser inexistente. Foi primeira de muitas coisas que o Vasco me ensinou.
Falámos um pouco. Pareceu-me um tipo brejeiro, andava com muletas e fumava incessantemente. Sussurrei perguntas sobre a sua perna quebrada. Ele explicou, gritando. Não percebi nada, e para não revelar a minha inépcia, dei-lhe um sorriso. Ele não queria que eu percebesse, só desejava monologar. Desde então, quando me via, contava-me as crónicas da sua vida. Aceitei os discursos dele como um exercício de compreensão oral. Entendi que tinha 70 e tal anos, era reformado, mas tinha trabalhado na mesma empresa quase a vida toda. Sei lá o que fazia. Morou no Brasil e na Alemanha. Deus sabe porquê. O que ficou claríssimo – era um tópico bem recorrente – era que tinha muitas mulheres e tomava muita droga. Não o julguei. Ainda não era capaz de julgar em português.
Assim, acamaradei-me com um “anticanelista”. Com passos pequenos, comecei a falar também, preparando em casa pequenas histórias sobre a minha vida. Contei-lhe que era da Arménia. Depois tive de lhe explicar onde fica a Arménia. Disse-lhe que me mudei para Lisboa para fazer o doutoramento. Depois esclareci o que é um doutoramento. Que dantes trabalhava como jornalista. Que estudava português há cinco meses com um professor russo em São Paulo e, por isso, falava com uma mistura de sotaques diferentes. Ouviu-me e vaticinou:
– Agora o teu professor sou eu.
O medo de falar português passou. Quase todos os dias era rodeada pela língua e não tive como não a usar. Era como se o Pigmalião de Bernard Shaw acontecesse em Portugal. Em vez de Henry Higgins torturar Eliza Doolittle com as nuances da pronúncia, tomando uma bica, ensinava-lhe o calão, contava anedotas sobre alentejanos, ria muito alto das próprias chalaças e só ficava raivoso quando «"o" pobre rapariga misturava "as" géneros "dos" palavras». Em vez de Audrey Hepburn, eu, no papel da Eliza Fazpouco, pegava em todas as frases que o professor me dizia e guardava-as no papel do caderno. Aprendi que um dos empregados da mesa era um bonacheirão, enquanto o outro era um estropício. Que tinha de arranjar um namorado, ou pelo menos um namorico, porque a vida sem amor não vale nada. Que estudar português era um trabalho de ourives, mas, em breve, me ia tornar numa fala-barato. Quando uma vez lhe disse que faltei a uma aula, descobri que tinha feito gazeta. A minha parte jornalística ficou entusiasmada, mas a parte académica envergonhou-se.
Nunca combinávamos ver-nos. Às vezes, não o encontrava na pastelaria e por lá jazia, aproveitando a leitura. Mas, de repente, o Vasco aparecia e trazia com ele um ar contente e uma nova história sobre o velho mulherengo.
– Ó Vasco, és um pinga-amor, – usei a palavra que uma amiga me tinha ensinado para impressionar o professor.
– Sou um pinga, querida. Sem amor.
Com o tempo, via o Vasco cada vez menos – tinha-se mudado para outra casa, no Areeiro. Não tinha parado de ir à pastelaria na esquina, mas a frequência diminuíra. Conheci outras pessoas: a senhora Ana Maria, que me contou todos os 90 anos da sua vida e recitava sempre Camões; o senhor Manuel, que não falava muito, mas beijava-me a mão; o Doutor que, de manhã, lia todos os jornais à sua mãe. Descobri também o nome do empregado de mesa – Hernâni – que continuava a dizer que eu estava cada vez mais bonita. Depois ouvi-o dizer os mesmos elogios aos outros clientes e perdi a fé nos empregados de mesa.
Desejando vingança, tornei-me uma lambisgoia das pastelarias. Frequentava agora outras, onde dizia os “obrigadíssimas”, que antes eram exclusivamente dedicados ao Hernâni. Numa delas, conheci o senhor João, que já preparava o meu café e pastel de nata antes de eu pedir, e o senhor Tino, que me recitava poemas de Fernando Pessoa e me alcunhou de «sobrinha do Gulbenkian».
Nunca conseguia terminar sequer um capítulo de qualquer livro em nenhuma pastelaria, mas francamente, não era esse o meu objetivo. O que queria, e alcancei, era que me perguntassem: «Mas o que estás sempre a ler?» E depois ouvia histórias mais belas do que as dos livros – na primeira pessoa. Por vezes, penso: se tivesse juntado todo o dinheiro que gastei nos cafés e pastéis de nata, teria conseguido pagar ao professor particular. Mas duvido que o professor dissesse, cheio de raiva, como quando o empregado de mesa chegava com o pedido atrasado, «Ai, que canalha!».
O meu professor Vasco dizia. A última vez, quando o vi, conduzia por Arroios com um chapéu de capitão em cima da cabeça. Parou e saiu do carro com um livro debaixo do braço:
– Comprei na Feira da Ladra hoje. Tu gostas de ler, não?
Era a novelização da Música no Coração. Guardei-o, mas nunca li. Se calhar a altura chegou – daqui a uma semana, vou fazer o exame de português para confirmar o nível C1. Deveria estar com medo, mas não estou. Porque, afinal, todas as partes – oral, escrita, compreensão oral e leitura — são “vascobertas”.