« (...) Os portugueses perceberam que a condição de mortal é muito mais cómica e divertida que a de imortal. Sem morte, por exemplo, não poderíamos saborear o prazer de ir “para o andar de cima” ou “para o beleléu”, que deve ser um sítio animado ou engraçado. »
Morrer é uma dificuldade impossível de contornar. Acontece a todos, todos os dias, de todas as formas, em todos os lugares e em todos os tempos. Não é preciso uma bola de cristal para prever que todos nós, mais tarde ou mais cedo, vamos ser expulsos da vida. Porque, no fim de contas, a morte é inerente a tudo o que se move e a tudo o que respira. Contra a morte não há resistência possível. Esfalfamo-nos ao máximo para lhe escaparmos, debatemo-nos diariamente para a evitar, porém, não adianta protestar, o relógio não pára, todos temos os minutos contados. Todos aguardamos (que remédio!) a hora de morrer, o momento em que seremos lançados à fogueira da cremação ou em que o nosso nome será gravado numa lápide do cemitério. Morrer é uma lei de constatação empírica, um princípio absoluto, a única verdade inalteravelmente constante. Essa é – em síntese – a tragédia da morte: ser aborrecida, não ter piada nenhuma. Talvez para compensar os incómodos e os tédios de ser previsível e inevitável, a morte tem sido abundantemente escarnecida e ridicularizada pela língua portuguesa.
Ao contrário do que acontece na maioria dos idiomas, em que a morte é uma coisa incomodativa, no calão de Camões «patinar», «quinar», «pifar» ou mesmo «lerpar» têm aspectos positivos: do indivíduo que «finou» ou que «expirou» diz-se que «foi desta para melhor» (o que significa que morrer é livrar-se das consequências negativas de estar vivo), que se lhe «acabaram os trabalhos» (o que constitui uma expressão de encorajamento para quem arrasta por este mundo a sua preguiça) ou que foi «para a terra da verdade» (o que revela uma confiança épica no além-túmulo).
Não há dúvida de que a língua portuguesa tem um talento especial para troçar com a ideia de falecer. Expressões como «abotoar o sobretudo de madeira» ou «vestir o pijama de madeira» são a demonstração viva de que os portugueses nada vêem no mundo mais digno de ser gozado do que a morte. De facto, os portugueses perceberam que a condição de mortal é muito mais cómica e divertida que a de imortal. Sem morte, por exemplo, não poderíamos saborear o prazer de ir «para o andar de cima» ou «para o beleléu», que deve ser um sítio animado ou engraçado. Tal-qualmente, «tirar o passaporte para o outro mundo» metaforiza a morte como uma viagem ao estrangeiro ou um passeio emocionante de Verão, afastando-nos assim da ideia de morte a sério, de morte indubitável.
Existem muitas vias para chegar ao fim, mas só aqui, em Portugal, é que se pode «morrer de morte matada» ou de «morte macaca». Morrer de «morte macaca”»– expressão que junta a circunstância de se morrer de forma desastrada, desgraçada ou inglória com a ideia de óbito inesperado, repentino ou fulminante – é diferente de «estar com os pés para a cova» ou de «só ter uma sapatilha de fora», que significam que ainda não se «bateu a bota», mas que não vale a pena fazer planos e ter esperanças, pois o «Fernando não tarda» («não tardar», já vocês vêem, consiste na iminência de ir para a sepultura). De igual modo, quando um indivíduo diz «daqui não passo» é porque está a «bater a canastra» ou «a caçoleta», ou seja, está quase a «desviver» (que é como quem diz «a viver outra vida»).
Neste compasso, é interessante verificar que «abandonar esta vida» pode ter uma influência pedagógica, pois do indivíduo que foi «para o jardim das tabuletas» se diz que «foi estudar botânica por baixo». Dentro da mesma ordem de curiosidades (isto é, a forma como a terra interage connosco depois de morrermos), encontramos imagens que têm o mérito de provocar um movimento de piedade pelo recém-falecido, como «morder o pó», «dar de comer às minhocas» ou «pôr as tripas ao sol».
Uma outra maneira de conceber a morte é pressupor que ela produz efeitos fertilizantes, como parece ser evidente na expressão «ir adubar a horta». Porém, quando se trata de descrever a condição de estar morto, não há nada que se assemelhe a «ir comer alfaces pela raiz». Também gosto bastante da expressão «ir para a quinta dos pés juntos», mas não resisto mesmo é à possibilidade de «ir ver a relva nascer por baixo». Variantes como «esticar o pernil», «transformar-se em presunto», «parecer um fiambre», «bater a alcatra na terra ingrata» ou «amassar barro com as costas» mostram que os portugueses sabem extrair da morte o que ela tem de singular.
Por outro lado, dizer que o Abílio «já lá está» ou o Vasco «foi-se» faz parecer simples a morte, como um estalar dos dedos, e vem confirmar que nenhuma outra língua atingiu tamanho poder de síntese na definição exacta do que representa morrer neste «quintal do tio Lopes», vulgarmente denominado Portugal. Enquanto as outras línguas têm dificuldade em imaginar que futuro nos aguarda depois de se «dar o berro», o português tem como certo que morrer significa «tomar o chá da meia da noite»[1] ou «ir conversar com Deus». Sabendo-se, como se sabe, que Portugal é um país de pequenos comércios (pastelarias, restaurantes), não há nada mais português que converter a morte num exercício de contabilidade geral – estar em vias de deixar de existir é o mesmo, deste ponto de vista, que «estar em últimas contas com a existência» e defunto é aquele que «já tem a conta feita» – ou num desses processos de cedência ou transferência da propriedade de uma loja, já que «trespasse» ou «hora do trespasse» são expressões sinónimas de passamento e decesso.
Há frases que hoje são pouco utilizadas, como «estar nas vascas extremas da resistência», que denotam um manejo impecável da língua portuguesa e provam, uma vez mais, que nada consegue ser mais típico de Portugal que a língua portuguesa. Finalmente, é salutar não esquecer, também, que expressões como «o fulano de tal deu o bafo» ou «o figurão de tal deu o peido-mestre» deviam ser ditas mais vezes.
Uma das grandes fontes do humor português é a burlesca sensação de «bater a asa», de empreender «a viagem de que se não regressa». E morrer, como se vê, constitui uma manifestação essencial da especificidade e da criatividade da nossa língua.
[1 N. E. – A expressão conhecida é «chá da meia-noite», ao que parece, referente à crença segundo a qual, aos doentes terminais que se encontrassem hospitalizados, se administraria uma bebida de efeito letal que se fazia passar por chá. Cf. Carlos Heitor Cony, "Chá da meia-noite", Folha de São Paulo, 14/11/2006; disponível no sítio eletrónico da Academia Brasileira de Letras).]
* Artigo publicado na revista Sábado n.º 777, de 21/03/2019, escrito conforme a norma ortográfica de 1945.